Poeta e Educador

Alencar e a terra de Iracema

Conferência Literária, com um estudo sobre a vida e a obra de José de Alencar, pronunciada em São Paulo, em 1939, no auditório do Jornal ‘A Gazeta’, em nome da intelectualidade cearense 4ª E D I Ç Ã O Editora e Gráfica Lourenço Filho

Minha terra, como todas as terras de legenda, tem um livro simbólico.
É nele que os guerreiros vão buscar alento e inspirações para as lutas em prol da liberdade.
Tesouro de tradições e lendas heróicas, tornou-se para os pintores, músicos e poetas cearenses, mais opulento de motivos e de símbolos do que os Eddas, da mitologia escandinava.
É, enfim, a fonte perene de beleza e entusiasmo, sempre aberta à sede secular de sonho e de heroísmo da minha terra e da minha raça.
Ainda agora, ao pôr-me em contato com a intelectualidade paulista, com a intelectualidade brasileira, para as páginas desse livro sagrado se volvem, num enlevo, o meu espírito e o meu coração:
‘Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frontes da carnaúba;
verdes mares que brilhais como liquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias, ensombradas de coqueiros;
serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.”
Este é o poema dos acentos mais profundos e de emoção mais alta da literatura do Brasil de todos os tempos. Não existe nada de melhor no patrimônio artístico e mental do nosso pais.
Há qualquer coisa de bíblico na invocação inicial de Iracema. Evola-se de suas estrofes inumeráveis o perfume indefinível dos salmos de David e do Cântico dos Cânticos.
Se, pelo que tem de caracteristicamente cearense, pode ser considerado a bíblia cívica e estética da terra da luz, por outro lado, pelo possui de legitimamente, de entranhadamente brasileiro, é a verdadeira Ilíada nacional, ou ainda, na expressão de Afrânio Peixoto, o ‘hino brasileiro, noivado da Terra Virgem com o seu Colonizador branco, pacto de duas raças na abençoada terra da América, poema épico, definidor de nossas origens, histórica, étnica, sociologicamente.
José de Alencar, com Iracema, anagrama de América, tornou-se o nume tutelar de sua erra, espécie de santo leigo do Ceará, cuja maior glória hoje consiste em ser chamado a ‘terra de Alencar’. Mas isso não impediu que o criador do Guarani se tornasse a figura central das letras pátrias, autêntico fundador da literatura nacional.
Seu estro inspirou-se na portentosa natureza brasílica, de onde retirou a mancheias ou fulgores, as tintas e s ritmos da sua obra única e imortal.
Como aqueles heróicos bandeirantes de botas de sete léguas, que saíram de Piratininga para dilatar o Brasil, abrindo estradas em demanda ao coração da pátria – Alencar partiu da terra do sol, como um Fernão Dias Paes Leme de outro feitio, para rasgar caminhos novos à inteligência do Brasil.
Esta caminhada foi tão áspera e rude quanto a daqueles ‘plantadores de cidades’, de que fala a soberba epopéia bilaquiana.
E tão profundos sulcos ele cavou no solo mental da nacionalidade, tão fortemente libertária foi a sua obra e tão virilmente criador foi o seu espírito que, ainda hoje, volvidos mais de sessenta anos do seu desaparecimento, todos os grandes movimentos literários – falo daqueles que, inspirados em motivos nossos, empolgaram e comoveram a alma brasileira – todos esses movimentos apenas cobriram o rascunho que José de Alencar traçou com o seu dedo de pioneiro e de vidente.
O sertanismo, o caboclismo, o regionalismo e outras correntes literárias de fundo nacionalista, que trazem à sua frente figuras como Afonso Arinos, Bernardo Guimarães, Araripe Júnior, Franklin Távora, Coelho Neto, encontram as suas verdadeiras origens na obra alencarina, tornada assim a nutriz da nossa inteligência e da nossa cultura.
Ronald de Carvalho, com a sua agudeza de seu censo crítico, viu no romancista das Minas de Prata um ‘precursor de estilo nervoso, cheio de tumultos, cortado de acidentes, vário, cambiante, meigo e violento de Euclides da Cunha’.
A vossa mesma semana de arte moderna, as correntes modernistas de Pau-Brasil, de Verde-Amarelo, de Arco-e-Flexa e de Maracajá giraram em torno do tema proposto pelo simbolista de Ubirajara.
São todos os movimentos revolucionários, filiados à obra do maior dos revolucionários das letras pátrias, daquele em cujas veias fervia o cálido e generoso sangue dos primeiros brasileiros que sonharam com a nossa liberdade política.
Como sabeis, José de Alencar descende de Bárbara de Alencar, a grande heroina cearense, e de Tristão de Alencar Araripe, mártir da Independência ao norte, como foi Tiradentes do sul.

ALENCAR E A LÍNGUA PORTUGUESA

Até o advento de Alencar, a literatura brasileira jungia-se servilmente aos cânones rígidos do classicismo lusitano. Não do classicismo enérgico e puro de Camões, mas do pior, do classicismo gongórico, decadente, filho legítimo do eufuísmo britânico e do preciosismo gaulês.
Por tudo isso, pode-se dizer que o poeta de Iracema, com o seu estilo mágico, ensinou o Brasil a escrever…
Rompendo com as normas da monótona e afetada estética do além-mar, Alencar abeberou-se das fontes nacionais, criando formas novas de expressão, imagens, palavras e símbolos, que, afinal, caracterizaram a fisionomia mental da Pátria.
Não foi um iconoclasta da língua-mãe, destruindo pelo simples prazer de destruir. Nem tampouco foi um apedeuta que se utilizasse do chamado ‘dialeto brasileiro’ como ‘surrão amplo, onde cabem à larga, como diz Rui Barbosa, todas as escórias da preguiça, da ignorância e do mau gosto’.
Aliás, o autor da Réplica previne a citação do glorioso romancista cearense como justificativa para os desmazelos vernáculos dos escritores de fancaria. E o faz com o esplendor da sua pompa verbal: ‘Depois então que se inventou, apadrinhado com o nome insigne de Alencar e outros menores, o dialeto brasileiro, todas as mazelas e corruptelas do idioma que os nossos pais nos herdaram cabem na indulgência plenária dessa forma de relaxação e do desprezo da gramática e do gosto’.
Sobre o mesmo assunto aqui está o depoimento valioso de Machado de Assis: Á língua (refere-se à de Alencar), já numerosa, fez-se rica pelo tempo adiante. Censurado por deturpá-la, é certo que a estudava nos grandes mestres, mas persistiu em algumas formas e construções, a título de nacionalidade’.
Eis como o próprio autor do Guarani trata da questão nas suas célebres cartas sobre a Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães: ‘O velho estilo clássico destoa no meio dessas florestas seculares, dessas catadupas formidáveis, desses prodígios da natureza virgem que não podem sentir as musas gentis do Tejo e do Mondego.’ E, com o desassombro de Ájax invectivando os deuses, exclama ainda no prefácio de Diva: ‘Censurem, piquem ou calem-se, como lhes aprouver. Não alcançarão jamais que eu escreva neste meu Brasil coisa que pareça vinda em conserva da outra banda, como fruta que nos mandam em lata.’
Foi isso o bastante para que, um ano inteiro, de 1871 a 1872, gramatiquelhos e criticastros arremetessem, furiosamente, contra o inexpugnável reduto alencarino. Não há notícia, em nossa história literária, de outra agressão mais violenta e mais torpe.
Não serei eu quem vá recordar, neste fúlgido momento, a triste e inócua campanha do tamborileiro mercenário pretendeu vãmente destruir a figura homérica do romancista patrício. Sabeis, decerto, que me refiro ao homem que Alencar, num instante de cólera olímpica, classificou de ‘gralha imunda’ ao medíocre José Feliciano Castilho, cujo único valor literário consistia em ser o guia de um cego ilustre: o notável escritor português Castilho (Antônio…).
Tudo porque Alencar, com intuição genial, notou e compreendeu no seu tempo, o fenômeno de assimilação das duas línguas, a aborígine e a lusa, que o sociólogo Gylberto Freyre estudaria, meio século depois, nas páginas da Casa Grande e Senzala.
Ainda hoje na nossa toponímia geográfica, os termos autóctones sobrepujam de muito os lusitanos, porque o descobrimento e conquista dos sertões verificou-se na fase de pre-domínio do tupi como língua popular.
Só mais tarde o idioma português conseguiu dominá-lo, mas o ‘colonizador já estava impregnado de agreste influência indígena, já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se num português sem rr nem ss; infantilizara-se quase em fala de menino, sob a influência do ensino jesuítico, de colaboração com os columins.’
Emancipado assim da vernaculidade lusitana, aspirando aquele perfume de liberdade que sentia nas flores de nossos campos, integrado no seu meio e na sua raça, Alencar bem merece o epíteto de ‘príncipe da literatura propriamente chamada brasileira’, com que o classifica Eugênio de Castro em livro recente e notável sobre a nossa geografia lingüística e a nossa cultura.
Se a obra do gênio, como observa Goethe, não é a que assenta sobre o ‘gosto’, mas a que se firma no ‘caráter’ do povo, Alencar fez uma obra verdadeiramente genial, porque moldada na índole da sua gente, no caráter da sua raça. ALENCAR E O INDIANISMO O indianismo foi a arma que Alencar ampunhou para dirigir a grange e vitoriosa batalha pela independência mental da sua pátria, continuando gloriosamente a obra de seus heróicos ascendentes que deram o sangue pela nossa liberdade política e social.
É José Veríssimo quem, insuspeitamente, o afirma: ‘José de Alencar teve, mais que nenhum escritor brasileiro, a vontade firme, o propósito resoluto de fazer a literatura nacional.’
O índio foi o material, o meio, o instrumento de que se serviu no início, porque Alencar não se encerrou no indianismo, como ainda observa o autor da História da Literatura Brasileira, pois explorou mais tarde outros motivos nacionais, com o fito de emancipar-nos intelectualmente da pátria de Camões.
Nos seus selvagens não há, como os inimigos de sua glória quiseram ver, perfeita semelhança como os tipos exóticos de Chateaubriand. O romancista de Atala pos na boca de seus índios uma linguagem que era o reflexo de idéias somente possíveis de serem elaboradas pela maturidade espiritual de povos cultos.
Também não colhe a pecha de imitador servil de Cooper, que era uma espécie de historiador literário, ao passo que Alencar é um escritor genial, pela frescura e garridice do estilo, pelo inédito e cósmico da inspiração.
Apenas Alencar serviu-se do aborígine, como Cooper dos peles-vermelhas, O fenômeno social e político é o mesmo; aqui, a libertação intelectual de Portugal; na América do Norte, a separação espiritual da Inglaterra.
Disse muito bem Araripe Júnior: ‘O indianismo ou, por outra, o sentimento da legenda indígena, entranhado no coração criolou pela reação romântica, só teve um representante sério no Brasil, como só um teve também na América do Norte: – José de Alencar e Cooper.’
Mas entre os dois espíritos é remoto o parentesco. As minúcias e certas vulgaridades do Último Moicano estão aquém da grandeza épica do Iracema e do Guarani.
Não há nos romances indianistas de José de Alencar somente ficção. Tecla por demais batida, esta, ainda guarda soncridades inéditas. Os que vêem nos seus tipos indígenas mero produto da imaginação esquecem-se das pacientes pesquisas bibliográficas, das beneditinas sondagens coloniais a que se entregou, durante a sua vida acadêmica, o futuro cantor de Peri e Ceci, com o objetivo único de descobrir e recolher o material do verdadeiro romance brasileiro que já lhe ardia e palpitava no cérebro, num delírio genésico de expressão.
‘Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais busca com sofreguidão, confessa ele, um tema para meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época.’
Os velhos cronistas que viram a pátria na infância, soltando os primeiros vagidos e ensaiando os primeiros passos, forneceram-lhe assim o barro em que ele esculpiu figuras dignas do mármore e do bronze em que as fundiu a posteridade.
A beleza sedutora e enleiante do corpo jovem de Iracema é a mesma daqueles ‘corpos tam limpos, tam gordo e tam fremosos, que nem pode ser mais ser’, descobertos em 1500 pelos olhos enfeitiçados de Pedro Vaz Caminha no esplendor tropical da Terra de Santa Cruz.
Ainda o banho da virgem indiana, página de rara beleza, assenta na pura verdade histórica. Lery e Gabriel Soares referem nas suas velhas crônicas que um dos melhores divertimentos para os índios era o banho de rio. O pastor protestante, que tanto se empolgou com a carnação maravilhosa das nereidas selvagens, chegou a afirmar que as índias, nuas, na graça natural de suas formas, nada fizeram a dever às moças civilizadas, em sedução e beleza…
A própria língua que Alencar põe na boca de seus índios, doce, lírica, melodiosa e rica de imagens, não é senão a que Anchieta, poeta e filólogo a um tempo, ouviu e aprendeu diretamente dos lábios dos selvagens: ‘Sua língua é delicada, copiosa e elegante, tem muitas composições e sincopas, mais que os gregos.’ Fernando Cardim também se refere a opulência e beleza da língua geral: ”É fácil, e elegante, e suave, e copiosa, a dificuldade dela está em Ter muitas composições.’
Foi essa língua numerosa e sonora que Alencar traduziu num português ‘sem o ranço reinol’ de que fala Gylberto Freyre, mas bastante aproximado da língua que, segundo a observação pitoresca de Gabriel Gandavo, o amigo de Camões, ‘carece de três letras, convém a saber não se acha nela nem F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei…’
‘Mas nessa tradução, escreve Alencar, está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca dos selvagens.’
Por isso Alencar trabalhou tenazmente por desvendar os mistérios do idioma cujo conhecimento considerava o ‘melhor critério para nacionalidade da literatura’, pois não dá, ‘não só o estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu espírito e as menores particularidades da sua vida’.
A força assombrosa do índio, que no Guarani simboliza a raça indígena, já foi levada a ridículo por críticos desavisados e incultos. Entretanto, Peri, que para muitos não passa de um herói mitológico, espécie de Hércules de tanga ou Ájax de arco e flexa, enquadra-se no depoimento dos antigos cronistas, a não ser naquilo em que o gênio plástico de Alencar completa ou engrandece a realidade.
Diz Anchieta, falando dos índios: ‘Nos campos e florestas andam e rompem como bichos’, ‘são tão destros que não lhes escapa passarinho que não matem, e a frechadas matam o peixe n’água’. E Lery, segundo o autor de Sobrados e Mocambos, salienta nos indígenas e na sua grande força física, abatendo a machado árvores enormes e transportando-as aos navios franceses sobre o dorso nu.
Quando se refere ao caráter dos silvícolas, depõe o Apóstolo das Selvas na sua minuciosa Informação da Província do Brasil: ‘Não são demandões, mas benfazejos e caritativos, todos os que lhes entram em casa comem com eles sem lhes dizer nada.’
Pergunto-vos agora: existiu ou não a cabana de Araquém – símbolo brasileiro de hospitalidade?
No Ceará, pelo menos, quando se quer significar a um visitante carinho e apreço especiais, são as palavras amigas do velho pajé que logo borbulham e cantam em nossos lábios: – ‘Bem-vindo seja o estrangeiro a cabana do Araquém.’
Para os conterrâneos de Alencar as figuras que ele criou são tão vivas e reais como as que aparecem nos versos belo e fortes deste soneto do grande poeta cearense Júlio Maciel sobre o idílio do ‘guerreiro branco’ com a ‘virgem dos lábios de mel’:

Rebelde e forte, aqui, outrora se implantava.
A taba indiana – aqui, onde a lama lua cheia,
Pródiga, a derramar em cachões a luz flava,
– Agora a estes casais a fachada clareia. Quanta vez trom de inúbia, entrechocar de clava
Não vibrou pelo azul que sobre mim se arqueia!
Praia! O tropel da tribo em correria brava
Quanta vez não sentiste a sacudir-se a areia! E Embora tu, passado, a lenda antiga escondas,
Eu sei que o amor também floriu: no treno
Da aragem, no marulho eloqüente das ondas. Parece-me inda escuto, em meio à noite clara,
O selvagem rumor dos beijos de Moreno
E as falas de paixão da meiga tabajara! ALENCAR E MACHADO DE ASSIS Agora que pelo Brasil todo, se forma um concerto de merecidos aplausos à personalidade de Machado de Assis, é bom que não esquecemos o quando deve o romancista de D. Casmurro ao romancista do Guarani.
Em mais de uma página, em trechos de crítica, num discurso célebre, em várias crônicas e reminiscências, Machado de Assis põe em relevo a poderosa influência que Alencar exerceu sobre seu espírito e a sua formação literária, chegando mesmo a chamá-lo de ‘chefe dos chefes’.
E quem compulsar com vagar e com amor, porque sem amor não há compreensão, a obra alencarina, lá descobrirá, por sem dúvida, a nascente do veio cristalino da estética machadiana. O mesmo ceticismo do psicólogo de Quincas Borba melancolizou e enoiteceu os últimos livros do prozador cearense. A técnica literária dos constantes, tão características de Machado, como acentuaram os seus inúmeros críticos, já fora apontada como peculiar ao dramaturgo de Verso e Reverso pelo senso crítico de Araripe Júnior, em livro que o próprio Machado chamou de ‘estudo imparcial e completo’ sobre o escultor intelectual de Peri e Ceci.
Profundamente ligado às fontes literárias da Europa, com um respeito quase supersticioso pela gramática lusitana, mas dotado de altíssimos dons de análise, Machado terminou com mão de mestre o romance psicólogo que Alencar, no seu assombro polimorfismo, tentara realizar também em Diva, Lucíola e Senhora.
Notável, talvez único, pela revelação de mundos interiores, paisagens introspectivas, pelo cômico amargo de seu humor, Machado de Assis, entretanto, não podia ser jamais um verdadeiro discípulo de Alencar. Faltou-lhe o ímpeto criador, a força imaginativa, a música verbal, a receptividade patriótica do soberbo poeta de Iracema.
Há provas que, iniludivelmente, evidenciam o excepcional conceito em que o artista da Mosca Azul tinha o paisagista miguelangelesco das cheias do paquequer. Lembro-vos, de passagem, que o nome solar do prosador cearense, enquanto vivo foi Machado de Assis, que o escolhera para seu patrono, fulgiu como um brasão de ouro no pórtico da cadeira presidencial da Academia Brasileira de Letras.
Ainda agora, num pequeno volume de páginas esquecidas do psicólogo de D. Casmurro, o ilustre crítico brasileiro contemporâneo Eloy Pontes, estudando as influências literárias sofridas por Machado de Assis, escreve o seguinte: ‘O romancista de Iracema foi quem mais vivas influências teve no seu destino literário, sem dúvida alguma. Os traços dessa influência ficaram indeléveis. Machado de Assis recordava-os sempre com desvanecimento.’
No admirável estudo sobre o teatro de Alencar, Machado com aquela sua finura crítica, analisa, uma por uma, as peças do dramaturgo e comediógrafo de Asas de um Anjo, Verso e Reverso, Demônio Familiar e Mãe – peça que ele classifica de ‘obra verdadeiramente dramática, profundamente humana, bem concebida, bem executada, bem concluída’, afirmando, finalmente, que ‘estava acostumado a ver no Sr. José de Alencar o chefe da nossa literatura dramática’.
E quando, por influência direta do Imperador, se fez em torno do criador de Ubirajara aquele vácuo que tanto amargurou os seus últimos dias nesse planeta, foi Machado quem numa carta pública, em resposta a carta que Alencar lhe escrevera apresentando-lhe Castro Alves, disse que ele tinha ‘contra a conspiração da indiferença um aliado invencível: a conspiração da posteridade’.
O estro machadiano de As Americanas vibra no mesmo diapasão romântico e patriótico do indianismo alencarino, ainda que sem a força expressional do poeta dos Filhos de Tupã.
Graça Aranha, que era um machadiano impertérrito, escreveu na Estética da Vida: ‘José de Alencar teve o privilegio de ser o primeiro escritor de síntese que surgiu no Brasil. Machado de Assis foi um imenso escritor de análise: examinou os fragmentos do mundo moral brasileiro, mas em nenhum de seus livros teve a fôrna de reunir estes fragmentos e dar a síntese da civilização brasileira; e por isso faltou a Machado de Assis esse relâmpago de gênio que teve Alencar, quando no Guarani fixou o ciclo da formação nacional do Brasil, o encontro do português e do índio no mundo tropical, a fusão das duas raças de que nasceu a alma brasileira.’
O romance de Machado de Assis, à parte o sentido universalista que alguns de seus críticos lhe apontaram, ficou restrito à vida carioca, de que ele foi u interprete amoroso, irônico e sutil.
Alencar enveredou por caminho diverso, realizando uma obra orgânica de nacionalismo.
O que os gloriosos paulistas Alexandre de Gusmão e José Bonifácio, no terreno diplomático e político, – o primeiro como inspirador e autor do Tratado de Tordesilhas, o segundo como Patriarca da independência – fizeram pela integridade territorial e emancipação política do Brasil, fê-lo José de Alencar no setor intelectual, criando e fundando a genuína literatura brasileira.
Um rápido olhar sobre a sua obra poliédrica prova-nos que ele não se imitou a encarar aspectos da sociedade ou da natureza, mas a pátria inteira, tornando a sua obra literária, no justíssimo dizer de Gilberto Amado, ‘o retrato integral do Brasil.’
Estudou a vida aventureira dos vaqueiros do norte no Sertanejo e pintou os dramas singulares dos pampas do sul no Gaúcho, a vida colonial nas Minas de Prata, Guerra dos Mascates e Garatuja; a sociedade do tempo em Diva, Pata da Gazela, Lucíola, e Senhora; por fim se escreveu o Iracema – hino ao Ceará, produziu o Guarani – hino ao Brasil.
Machado mesmo o reconheceu ao tratar desse ponto nas Páginas Recolhidas: ‘O espírito de Alencar percorreu as diversas partes da nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-os em suas páginas, compondo assim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos, a unidade emocional da sua obra.’
Daí Ter podido Agripino Grieco dizer na Evolução da Prosa Brasileira que José de Alencar foi ‘uma espécie de conterrâneo de todos nós.’… O ESTILO DE ALENCAR Sabendo como Remy de Gourmont que não há nada mais perecível do que o estilo que não repousa sobre a solidez de um pensamento forte – Alencar jamais escreveu no vácuo, pelo só efeito da frase campanha e vazia.
Caráter sem eiva, ele não seria nuca o ‘dizedor das frases’, de Pascal.
O seu estilo, dentro da literatura brasileira, é como o canto do uirapuru das selvas amazônicas. Escutá-lo é fitar, para sempre, extasiado à ouvi-lo, porque as suas harmonias tem qualquer coisa de extra-humano, de quase divino.
Disseram bem João Ribeiro e Sílvio Romero que Alencar não precisaria assinar o que escrevesse. Em verdade, a nota pessoalíssima de seu estilo, onde quer que vibrasse, seria, facilmente, identificada, tanta é a fascinação que desprende e irradia.
Alencar, ao reverso do que supõem críticos apressados e apriorísticos, cuidou sempre de sua forma de expressão, da sua linguagem, de seu estilo, sem a tortura genesíaca de Flaubert, mas com a paciência amorosa de Renam.
Lêde o que ele escreveu no post-scriptum de Iracema: ‘Minhas opniões em matéria de gramática tem-me válido a reputação de inovador, quando não a pecha de escritor incorreto e descuidado. Entretanto poucos darão mais, senão tanta importância à forma do que eu: pois entendo que o estilo é também uma arte plástica, porventura muito superior a qualquer das outras destinadas à revelação do belo.’
O estilista das Minas de Prata tornou-se, realmente, dono de todos os segredos dessa arte esquiva que, à semelhança das abelhas, mata as que a dominam e fecunda…
Ninguém conseguiu, no Brasil, antes dele e depois dele, aprender melhor o valor plástico das palavras, o sentido escultural do verbo.
Como aquele ‘estatuário de colossos’ de Castro Alves, José de Alencar modelava quadros ciclópicos com essa luta entre o Amazonas e o Oceano, que tem a grandiosidade de uma página de Homero.
‘Ele viu o grande rio combater com o mar, no empo da pororoca. Os dois chefes tocam a inúbia antes da peleja, para chamar seus guerreiros.
Vem de um lado as águas do mar, são os guerreiros azuis, com penachos de araruna; vem do outro as águas do rio, são guerreiros vermelhos, com penachos de nambu.
Começa a batalha. Os guerreiros se enrolam, como a corrente da cachoeira batendo no rochedo; a terra estremece com o trovão das águas.
Mas o grande rio agarra o mar pela cintura. Arranca do chão o inimigo; carrega-o nos ombros, solta o grito do triunfo.’
Mas o estilo alencarino assemelha-se ao Proteu mitológico, pela multiplicidade dos efeitos, pela variedade dos tons, pela riqueza das tintas, pela exuberância dos ritmos.
A mesma cena que ele fixou nas páginas do Ubirajara, com sobriedade de palavras, para dar maior relevo às figuras, segundo o processo homérico, ei-la em majestosos versos brancos, nesta invocação ao Amazonas, do seu belo poema inacabado Os Filhos de Tupã:

Salve, Amazonas! Rei dos reis das águas
Tamuy dos rios, filhos do dilúvio!
Gigante que o maior dos oceanos
Gerou nos flancos da maior montanha!

Pela terra que vergas com seu peso,
Os mil braços, que alongas pelas serra,
abrangem tanto espaço que outros mundos.
Couberam ainda neste mundo novo
Feito para teu berço. Com desprezo,
Aos pés o colo esmagas do oceano
que mugindo se roja pelas praias;
Mas, prostrado e vencido, não vassalo
O mar soberbo às vezes se revolta,
Alçada a fronte, a juba desgrenhada,
Se eriça e raiva e ruge e rosna e troa:
E a longa, imensa cauda destorcendo
Tem enlaça o corpo no impotente esforço.

Dorme, ó gênio das águas! Quando ao sonho
Terrível do Senhor, tu despertares,
O mundo voltará de novo ao caos.’

Nos Versos que acabastes de ouvir ressaltam outras qualidades de Alencar como dominador do verbo. O prosador transmuda-se em poeta, manejando o verso branco do mesmo modo que os seus guerreiros selvagens manejam o arco e a flecha.
Quase não se nota a ausência da rima, em face das imagens e onomatopéias.
Escultor admirável da palavra, que ele era, não sobrepujava, entretanto, o pintor em cuja paleta se misturavam todas as tintas das florestas tropicais, todas as luzes e todas as sombras dos arrebóis e crepúsculos brasileiros.
Os seus grandes quadros a óleo, como os do Guarani, não excedem, contudo, as aquarelas delicadas em que retrata uma curva de céu ou um beijo de virgem: ‘A boca do guerreiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficaram assim unidos como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram da mesma flor.’
Observa, perspicazmente, Araripe Júnior que Alencar na sua arte não revelou unicamente escultor e pintor, porque foi músico também.
Muitos dos seus trechos em prosa nos dão a impressão de pemas, aos quais falta somente o artifício da rima.
Se o estilo é um estado d’alma, como queria Amiel, a alma de Alencar era uma sinfonia. ALENCAR – POLÍTICO E PATRIOTA Refugindo ao campo propriamente literário, sobre o qual nos alongamos tanto, não o bastante para pintar-lhe a vera efígie, passamos a encarar o imortal cearense sob novos aspectos e novos prismas.
Vamos, em rápidos traços de esfuminho, estudá-lo como homem público e político. Havereis de verificar que, ainda aqui, ele foi tão nobre e tão grande quanto os que mais o foram em nosso país.
Trazendo no sangue a herança de uma família visceralmente ligada, desde os tempos coloniais, às questões partidárias do Brasil, filho de um homem que foi por duas vezes presidente de sua província nata e morreu como Senador do Império, José de Alencar não pode fugir à tentação da glória efêmera da política.
Dotado, porém, de uma sensibilidade de mil cordas, capaz de vibrar ao mais leve impulso, dono de um espírito requintado até à volúpia da perfeição e, além de tudo, servido por uma imaginação que recobria de fascínios e encantamentos a realidade mais dura, o épico majestoso de Ubirajara, como Lamartine, seu irmão em genialidade, marcou sua passagem pelos céus turvos da política nacional com o fulgor apoteótico de um cometa.
Se há um aspecto da vida alencarina onde a mocidade brasileira possa encontrar à farta exemplos de rijeza moral, dignidade de atitudes, inquebrantabilidade de caráter, espírito público, esse é certamente o político, que mais propriamente chamaremos cívico, porque a nota patriótica foi a que vibrou mais alto em todos os instantes, em todos os segundos dos 48 anos de sua fulgurante existência.
Data de 1860 o seu ingresso na política, quando se fez eleger deputado geral pelo Ceará. Não foi ruidosa nem brilhante a sua estréia oratória. Pequeno de porte, feições miúdas e delicadas, voz fraca e gestos sóbrios, estava longe de revelar o gigante que, em breve, sob o estímulo de seu brio cívico e o incentivo de seu orgulho mental, iria enfrentar e vencer os maiores vultos do parlamento brasileiro.
Extinta a Câmara dos Deputados em 1863, Alencar só retornaria à vida parlamentar em 1868, depois de haver traçado, como visão de estadista e alma de patriota, as célebres Cartas de Erasmo, dirigidas ao Imperador. Delas disse Araripe Júnior, o mais atilado e brilhante biógrafo de Alencar: ‘Há aí lampejos de estilo verdadeiramente admiráveis, instituições até de quem vive já em mundo de videntes.’
Foram essas cartas que o conduziram a pasta de Ministro da Justiça, do Gabinete de 16 de julho, onde infelizmente não encontrou clima para o seu caráter altivo e o seu espírito de eleito.
Não sabendo suportar, de cerviz baixa, as imposições e pontos de vista da Coroa, Alencar abandonou a pasta da Justiça para lançar a sua candidatura a senador pelo Ceará. Na carta dirigida a Itaboraí, solicitando demissão, alegava que não pedira vênia a Sua majestade o Imperador, ‘porque não a julgava necessária para exercer o seu direito de cidadão.’
Atirado nas fileiras da oposição, ele aí se manteve até o fim de sua vida coma galhardia altiva de seus maiores diante do perigo e do infortúnio. E foi então que Alencar se revelou, em toda a plenitude, como político, como estadista e patriota, confundindo e abatendo os mais temíveis adversários com o seu caráter inflexível como o tacape de Ubirajara e o seu verbo ágil como a flecha de Iracema.
O Gabinete Rio Branco, como o anterior, de Itaboraí, recebeu de cheio os golpes vibrados pelo formidável batalhador, golpes aos quais respondeu com aquela triste campanha difamatória sustentada pelos cofres públicos e dirigida, intelectualmente, pelo mercenarismo de José Feliciano de Castilho.
Referindo esse fato diante de seus pares, o deputado José de Alencar produziu a oração que a mocidade brasileira devia saber de cor. Nos períodos candentes desse discurso ciceroniano está retratado, em cores eternas, o perfil moral de um homem que atravessou o pantanal político sem manchar a alma, mas deixando após si claridade e cintilações.
Aludindo às críticas estipendiadas pelo Gabinete Rio Branco, num confronto impressionante que o engrandeceu aos olhos dos coevos e hoje o agiganta aos olhos da posteridade, José de Alencar assim terminou essa página imortal de sua vida pública:
– ‘Fui Ministro da Justiça, estive 18 meses nos conselhos da Coroa, e sem o menor resquício de ressentimento para com os meus adversários, recordarei à Câmara a oposição violenta de que fui objeto. Talvez, pelo menos nesses últimos tempos, não haja exemplo de ministro mais agredido, mais chocado em seu amor próprio, mais atacado em sua dignidade do que eu fui. Pois bem, eu tinha a verba secreta à minha disposição, verba de quem não dispunham o nobre Ministro da Fazenda, nem o nobre Ministro do Império; verba de cujo emprego não devia contas senão à minha consciência e a Deus. E contudo jamais desviei um real desta verba para minha defesa pessoal, jamais desafrontei o meu amor próprio à custa do povo que paga os impostos.
O Sr. Murta – Isso honra muito a V. Excia. (Apoiados).
O Sr. José de Alencar – E como pela continuidade do abuso temia não ser acreditado, mandei todos os documentos à mesa e aí estão no arquivo da Câmara. Eu os conservo como um dos atos mais honrosos da minha obscura carreira política.
O Sr. Andrade Figueira – É um documento muito honroso que há de servir de exemplo aos futuros ministros.’
Na memorável oração de que citamos esse grande e pequenino trecho, lampeja, aqui e ali, o seu ódio contra a ‘imprensa clandestina’ em períodos que na carne moral de seus contendores rechinam como ferro em brasa:
‘Em verdade, senhores, eu tenho o que S. Excia. (refere-se ainda a Rio Branco) chama hábitos agressivos porque é meu costume combater os meus adversários de frente; sinto-me com coragem bastante para dizer a verdade em face. Nunca recorri a penas mercenárias (alusão a Castilho) para atirar os meus antagonistas o estigma que não tivesse a coragem de lançar em rosto; nunca.’
E no admirável prefácio de O Garatuja, ao mencionar o ‘museu arqueológico’, de onde extraíra o material com que compôs essa obra-prima de humor, tão saborosa quanto os melhores frutos, da ironia machadiana, Alencar impavidamente esclarece: “Meu arquivo arqueológico, por cautela vou prevenindo, não custou um ceitil aos cofres públicos, nem aspira a honra de ser comprado pelo governo do Sr. Pedro II, como está em voga desde a consciência até as leis, que tudo hoje em dia se vende, por atacado ou a varejo, em códigos ou empreitadas.’
Também na Guerra dos Mascates, retratando-se no personagem Carlos de Enéia, anagrama de José de Alencar, encarnou Pedro II na figura do Governador Sebastião de Castro Caldas ‘que era vagão insigne, porém no posto a que o subira a fortuna andava desencontrado, desgovernando tudo pela ânsia de muito governar’.
Mas a ação política do grande brasileiro, de tão claras e nobres intenções patrióticas, melhormente se refere nas Cartas de Erasmo, nos dois volumes de Discursos Parlamentares e na sua extraordinária produção jornalística, ainda hoje, infelizmente, dispersa e para muitos de todo desconhecida.
Tem razão Medeiros e Albuquerque, para quem Alencar é, de fato, a figura máxima da nossa literatura: ‘Mesmo no domínio da política, ele marcou a sua passagem com a superioridade de um vidente.’

ALENCAR E A TERRA DE IRACEMA Alencar é um índice de seu povo, uma síntese prodigiosa de todas as virtudes morais e mentais dos filhos de Iracema.
Quando falo dele é como se falasse de todos os cearenses que influíram na formação do sentimento pátrio.
Mas, se quisesse ser explicito, poderia lembrar no mesmo campo literário as figuras características de Domingos Olímpio, Adolfo Caminha, Franklin Távora, Alfredo Ladislau, Araripe Júnior, Antônio Sales, Rodolfo Teófilo e Gustavo Barroso, que todos fizeram, nos seus livros e romances, obra de cristalina brasilidade, pelos temas, pelo estilo, pelos tipos humanos e pela paisagem natural. Na poesia, ao lado de Álvaro Martins, Lívio Barreto, José Albano, Antônio Sales e Antônio Thomás, citaria a figura legendária de Juvenal Galeno, o grande poeta popular do Brasil.
Na esfera da filosofia e da crítica científica, recordaria os vultos de Rocha Lima e Farias Brito, este considerado a mais completa organização filosófica de nosso país.
Não esqueceria nesta rápida e sucinta enumeração aquele que descobriu veios novos na história da nossa grande gente, sagrando-se mestre de toda uma geração de historiadores e etnólogos. Não precisarei, certamente, dizer-vos que me refiro a Capistrano de Abreu.
Ao lado de outras grandes figuras de grande vulto em atividades e setores diferentes, como Moura Brasil, generais Tibúrcio e Sampaio, destacaria a personalidade do maior jurisconsulto da América Latina, daquele que deu perpetuidade ao direito brasileiro nas páginas imortais do Código Civil, deste sábio que é Clóvis Beviláqua.
Também não deixaria no olvido aquele artista de supremos requintes e alta inspiração que trouxe acentos até então desconhecidos à música nacional, baseando-se nos motivos grandiosos da natureza americana e nos poetas mais representativos da sensibilidade tropical. Alberto Nepomuceno tem um lugar de honre ao lado do vosso e nosso genial Carlos Gomes.
Embora pudesse citar ainda outros cearenses que concorrera, decisiva e diretamente, para a formação do sentimento pátrio, sobretudo entre a intelectualidade contemporânea da terra do sol, onde vigorosos poetas, romancistas e pensadores estão fazendo obra de profundo nacionalismo, creio que falei de todos, falando daquele que é uma encarnação viva do Ceará.
Na emoção deste instante evocativo, minha alma inquieta e nostálgica, quando busca a figura de Alencar depara a da própria terra natal e quando procura a da gleba nativa é para confundi-la, outra vez, com a do nervoso e cálido água-fortista dos ‘verdes mares bravios’…
A intelectualidade brasileira está vivendo, neste momento, em S. Paulo a grande hora de unificação espiritual da Pátria.
Somos todos, na comunhão de idéias que nos irmanam e nos identificam neste instante, uma só força, um só ideal, um só pensamento pelo Brasil.
Mais do que sempre, fica demonstrado agora o excepcional valor da imprensa como instrumento de formação intelectual e cívica dos povos, porque o belo e patriótico movimento a que ora assistimos foi promovido por uma das mais autorizadas vozes da imprensa brasileira. Quero referir-me a A GAZETA, o brilhante e dinâmico jornal de Cásper Líbero, cujas novas e monumentais instalações se inauguram em meio ao regozijo nacional.
E para mim, que tenho a subida honra de representar nesta hora, intelectualmente, o Estado do Ceará, hoje sob a direção de um homem de espírito, o eminente educador Dr. Francisco de Menezes Pimentel, é particularmente grato neste primeiro encontro com a intelectualidade paulista poder falar-lhe, como acabei de faze-lo, sobre o maior dos cearenses que foi, como escritor, o maior dos brasileiros.
S. Paulo! Terra das Bandeiras!
Aqui estão as raízes da Pátria. Foi sob estes céus amplos e gasalhosos que o Brasil sentiu correr-lhe no sangue os primeiros arrepios de liberdade.
Berço de Álvares Azevedo! O teu prestígio intelectual sobre o resto do País é uma fatalidade histórica. Anchieta, apóstolo e poeta, acendeu no colégio de Piratininga a lâmpada votiva da inteligência nacional. E ainda hoje, quatro séculos depois, os clarões de sua chama rutilam com o esplendor dos arrebóis americanos.
Foi nesse clima cívico alimentado pelo fogo da tradição, que José de Alencar se inspirou para traçar a obra imortal que ligou, indissoluvelmente, a terra heróica das Bandeiras à gleba solar da liberdade.
Ele, sinceramente, o confessou: ‘Os dois anos que passei em São Paulo foram de contemplação e recolhimento do espírito.’
Os laços que hoje nos irmanam dentro da comunidade brasileira foram assim tecidos por ele, mas eternizados por Carlos Gomes, quando retirou das páginas do Guarani o motivo da ópera que o seu gênio incorporou à música universal.
Pisando este glorioso e histórico solo paulista, sempre trescalante do aroma celestial do santo do Brasil, sob a poderosa sugestão do ambiente, eu ergo os olhos para o alto e vejo, no Tabor da Pátria, Carlos Gomes e José de Alencar que, unindo o sul ao norte, se alam ao infinito, dentro do mesmo raio de luz, irreais, numa transfiguração.

 

Rio, 20 de XI de 1939


Meu distinto colega e amigo,
Filgueiras Lima


Saudações Cordiais.


A sua conferência intitulada – A literatura cearense na formação do sentimento Nacional encantou-me integralmente. Elegância no dizer, pondo em relevo os dons do artista, observações exatas, originalidade de conceitos são predicados, que empolgam o leitor, como devem Ter empolgado os ouvintes.
Resumiu em José de Alencar a literatura cearense, que influiu na formação do sentimento nacional. É tão grande a individualidade do genial escritor, tão brasileira a sua vasta produção e tão harmoniosamente vibrou a sua sensibilidade artística de tempera excepcional, contemplando e sentindo a natureza do Brasil e a alma do seu povo, que reconhecemos nele, como o colega e amigo, a quem me dirijo, ‘a síntese de todas as virtudes morais e mentais dos filho de Iracema’.

Um longo e forte abraço do amigo e admirador

Clóvis Beviláqua


MENSAGEM DE D. ADÉLIA ALENCAR OLIVERA,
FILHA DE JOSÉ DE ALENCAR


Exmo. Sr. Dr. Filgueiras Lima :

Verdadeiramente comovida, entusiasmada e grata, ouvi religiosamente a sua sincera, bela e eloqüente oração sobre o meu adorado Pai. Vibrei de alegria e, praza aos céus, que todos os brasileiros que tiveram a ventura de ouvi-lo, tenham compreendido quem foi José de Alencar, e que Ceará possui filho como o Dr. Filgueiras Lima, digníssimo representante da terra de Iracema. Com um abraço para o Sr. E para a sua querida esposa, o muito obrigado de


Adélia Alencar Oliveira

8-11-939