(Oração proferida a 15 de agosto de 1951, na Academia Cearense de Letras)
Embora sócio fundador da antiga e extinta Academia de Letras do Ceará, tenho hoje de ingressar na Academia Cearense de Letras, como postulante ou herdeiro, ab intestato, e não pelo macio e fácil processo da ocupação automática de uma das poltronas vazias deste instituto literário… E não foi sem tropeços e espinhos a minha caminhada até aqui. Posso assegurar-vos que foi mais longa e mais batida do que a de todos os novéis acadêmicos desta noite excelentíssima. Daria, talvez, um capítulo singular das minhas memórias, se me fosse dado o direito de ter memórias… Vai em dez anos. O Ceará intelectual enlutara-se com o desaparecimento de Antonio Sales. Sabendo-me intimamente ligado, por laços de espírito e coração, ao numeroso cantor de ´´Minha Terra“, generosos amigos e confrades tiveram a lembrança, que lhes pareceu feliz, de apresentar o meu nome à vaga que o excelso mestre deixara nesta Academia. Afigurou-se-me sempre, – e ainda agora quero reafirmá-lo, impreenchível aquela vaga, insubstituível aquele nome. Porque, em mais de trinta anos de vida literária, Antonio Sales não teve jamais em vista outro ideal, outro fim, outro objetivo, que não o exclusivo trato e gozo das coisas do espírito, da cultura, da arte, da poesia. Quem poderia hoje, nestes tempos pragmáticos e rudes, refugir aos imperativos econômicos e políticos do mundo e do século, para galgar os últimos degraus da torre da ilusão literária e, só, na sua cidadela, como um trapista no seu mosteiro inacessível, enquanto as vagas humanas ululam e refervem derredor da frágil fortaleza de marfim, quem poderia, como ele, permanentemente lançar um olhar ansioso para as estrelas e para o infinito? Quem poderia viver só de letras e belas letras, nesta era de tretas e feias tretas? Daí ter eu sempre pensado que a mais luminosa cadeira deste sodalício, – porque tem como patrono José de Alencar e como fundador Antonio Sales, – deveria permanecer nesta vaga, após a morte deste, como homenagem definitiva ao mais puro, ao mais genuíno, ao mais fiel homem de letras que jamais passou por esta casa espiritual. Lembro, nesta altura, o impiedoso epigrama de Agripino Grieco, a propósito da substituição de Rui, na Academia Brasileira de Letras, pelo dicionarista e gramático Laudelino Freire. Diz o crítico ferino e mordaz que a idéia de deixar vaga a cadeira da `Águia de Haia´ ficou plenamente vitoriosa com a escolha acadêmica de seu sucessor: preenchida por ele, foi como se a cadeira continuasse vazia… Se em nossa terra houvesse espíritos capazes de tais perfídias literárias, este, por certo, seria o momento azado para a aplicação e repetição de contundente sátira de Grieco… Não devem ser as academias igrejinhas de maior âmbito em que o espírito de coterie possa manifestar-se mais ampla e desenvoltamente. O seu objetivo não é o mutuo turibular do incenso da lisonja: não é o reciprocar permanente de elogios bajulatórios, nem a permuta oficial de láureas e títulos honoríficos. Reduzidas a essa função de instrumento de vaidade pessoal e da fatuidade humana, transformar-se-iam, por certo, num entrave ao progresso das letras que essencialmente, lhes compete incrementar, ampliar, desenvolver e dirigir. Academia que não é foco de cultura, que não acende ideais de elevação mental na alma de um povo ou de uma nação, que não aprimora e opulenta os recursos da língua nacional, assegurando-lhe o resguardo e patrocínio das formas e modos expressionais de maior beleza e pureza idiomática – é academia que não tem consciência de si mesma, do seu papel, da sua função, da sua autoridade, do seu ministério, da sua força. Se não exerce influência na difusão das letras e na formação da sensibilidade estética do povo em geral, deixa de representar um órgão de vital importância no desenvolvimento histórico e cultural do país. Academias como grêmios literários, para o só e monótono declamar de versos e discursos, vazios de conteúdo humano e social, desligados da realidade viva da época e do meio, nada constroem, nada significam, nada deixam: são anarcronismos incompatíveis com as necessidades e problemas culturais do nosso tempo. Imortalidade – é a palavra mágica das academias. O instinto de conservação busca nesta ilusão de vida literária eterna uma compensação, que a psicanálise explica e desvenda, para a dissolução orgânica, fatal e irremissível. Mas o conceito de eternidade não se comporta dentro dos quadros estreitos e materiais da terrenalidade. O que é humano e terreno á também perecível e imperfeito. Ainda que a alma, partícula do divino, segundo Platão, seja a fonte da beleza literária e das criações estéticas – nem por isso podemos pensar numa imortalidade adstrita ao conceito cronométrico, e não metafísico, de tempo… Disse Santo Tomaz que deus cria do nada da forma e do nada da matéria, isto é, do absoluto. Mas o homem cria do nada acidental, ou seja, do nada da forma, com matéria preexistente. O ´monumentum aere perennius´ de Horácio. Ainda que não tenha sido destruído após dois mil anos, e, antes, se nos apresente cada vez mais venusto e mais sólido, por quanto tempo permanecerá de pe? Que representam os ´séculos sem número´do venusino genial diante dos séculos sem fim da eternidade? São ainda as vozes dos poetas que conseguem sobreviver á ruína e à catástrofe das nações e dos povos. Quando de um império nada mais reste, sob o cinza do tempo, continua sua alma a vibrar em outras almas, pelo milagre ou pelo mistério da poesia. É que a poesia é como um traço de união entre o céu e aterra, uma ponte entre Deus e os homens, e reapresenta, na frase de frei Luis de Leon, uma comunicação do alento celestial e divino´. É quando falamos de poesia, não estamos pensando em frases metrificadas a dedo, em rimas catadas como pedras preciosas, em artifícios literários e lingüísticos, em virtuosidade, em técnica, em verso. Já Farias Brito, setenta anos antes de nós, com a sua percuciência de filósofo-esteta, definira em termos de criação, inspiração, emoção, transfiguração, o mistério transcendente da poesia. Poesia tem música, porem toda essa música vem do ser e não das palavras, se as palavras não correspondem á transcendência da linguagem interior… Poesia é medida, mas uma medida que não é senão o próprio ritmo da vida, o ritmo essencial… Os românticos, entretanto, punham todo o segredo da arte poética no coração. Daí o verso celebre de Chénier: ´L’art ne fait que des vers; lê coeur Seul est poete’. Não se estranhe que façamos aqui o elogio da poesia, na qualidade de representante de um grupo de homens de pensamento que não votam à filha de Apolo o mesmo culto e a mesma adoração. Mas é que a cadeira em que hoje ingressamos tem como Nume tutelar um poeta que quase não fez versos, mas deixou um poema de versos inumeráveis e de beleza indefinível: ‘Iracema’. O seu fundador é também um artista em cuja alma se orquestravam, numa sinfonia admirável, todos os cantos da natureza e da vida. Antonio Sales fez voto de perpetua fidelidade á poesia e o cumpriu até o último instante de sua longa, pobre e rica existência. Por fim, é também um poeta, ainda que de segunda água, que hoje toma a responsabilidade de velar pelos destinos desta cadeira excelsa. Entretanto, não queremos afastar-nos da missão que nos foi generosamente confiada. Falamos hoje, aqui, em nome de um punhado, quase diríamos, um pugilo de intelectuais e artistas de primeira plana. Todos eles possuem vastos recursos mentais e expressionistas. Habituados ao trato constante das letras e ao manejo diário da pena, poderiam encher esta noite e este recinto de belos efeitos verbais e retóricos, e não apenas de lantejoulas coloridas, como cantador de pobres rimas que vos fala. Aí estão eles, na plena posse das cadeiras que conquistaram, para dar-lhes a força e o brilho da sua inteligência e da sua cultura: Abelardo Montenegro, um ensaísta culto, vigoroso e original; Braga Montenegro, contista de uma sensibilidade á Mansfield, ensaísta e crítico dotado de poderosos dons de criação e análise; Carlyle Martins, um poeta que já esfolhou a alma, como uma flor centifólia, ou multipétala, em vários sonoros livros de ritmos e rimas; Joaquim Alves, um sociólogo e psicólogo social que tem alma de artista; Fran Martins, um fecundo romancista de renome nacional; Raimundo Girão, admirado historiador e esteta que conhece com segurança os segredos do seu métier; Antonio Martins Filho, espírito pragmático e forte, dado assim ao estudo das letras jurídicas como das belas letras, autor de numerosos e expressivos trabalhos históricos e literários. A Academia Cearense de Letras, abrindo-lhes par em par as portas douradas, – pela mão de um poeta, historiador e jornalista do valor e da projeção de Andrade Furtado, cuja majestade verbal cintilou, ainda há pouco, em períodos da mais apurada beleza vernácula ao dar-nos as boas vindas em nome de seus pares, – enseja-lhes, a eles, a Academia, oportunidade de melhor concorrerem o desenvolvimento e o esplendor das nossas letras. Não será o Ceará mental uma grande noite, noite áurea e luminosa, esta em que a sua antiga Academia Cearense de Letras se ergue em novas bases, reunindo, no seu seio, dois grupos de intelectuais que, por muito tempo, inutilmente se hostilizaram, para afinal, reconhecerem que o objetivo que ambos perseguiam e colimavam, palmilhando embora caminhos diferentes, era o mesmo e alto objetivo de oferecer á nossa terra uma obra literária e cultural digna de suas tradições de pensamento e de arte? Sim, esta noite de congraçamento e cordialidade mental há de marcar, sem dúvida o início de uma nova fase na vida intelectual desta província brasileira. Não um daqueles períodos de agitações estéreis e cabotinismos fáceis, de entusiasmos ingênuos e elogios pródigos, que é sempre por onde começam as ‘novas fases,’ quando lhes minguam objetivos superiores e a porção de ideal que dá ás coisas do espírito a sua nota característica… Por duas vezes esta Academia teve de recompor-se e organiza-se, após longo período de estagnação e atonia. Em 1922, no governo de Justiniano de Serpa, por influência direta do grande Presidente que entregou o ensino público estadual a um técnico do porte de Lourenço Filho. Foi um período de inegável atividade, embora nem sempre objetiva e fecunda. A publicação do volume ‘Poesia cearense no Centenário’, organizado pelo poeta Sales Campos, riscou de luz, como um meteoro, este rápido capítulo de nossa história literária. Depois, recaiu a Academia no marasmo estéril e no silêncio. E em 1929 o Presidente Matos Peixoto, á semelhança do que fizera Justiniano de Serpa, pela ação dinamogênica do prestigio oficial, conseguiu que ela ressurgisse novamente. E com tal estardalhaço e estrondo ressurgiu, que provocou até a formação de uma nova Academia: Academia de Letras do Ceará, réplica um tanto lírica, inas corajosa, da oficial… E foi nesse ambiente carregado mais de entusiasmo literário do que propriamente de literatura, que os novéis daquela época, novos que hoje já se enfeitam de cabelos brancos, como os empoados elegantes do século XVIII, deflagram, entre nós, o chamado ‘movimento modernista’, com o jornal antropófago e felino ‘MARACAJÁ’… Este segundo ciclo da vida da Academia foi, alias, melancolicamente encerrado com a revolução de 30, e a conseqüente deposição do eufórico e brilhante humanista que dirigia então os destinos do Ceará. Com a transformação radical e profunda por que passou daí por diante a vida nacional, pela introdução no quadro administrativo e político do pais de outros nomes, outros valores e outros rumos sociais e filosóficos, as letras, como era natural, sofreram um abalo considerável, senão um decesso, baixando a segundo plano, no agitado cenário da Pátria Nova. A literatura nacional passou a adotar e utilizar endereços e formas diferentes. Os primeiros lideres populares, em linguagem que não primava pelo acesso gramatical nem pela beleza da forma, começavam a falar aos operários, camponeses, integralistas, legionários… A questão social, nascida das entranhas da revolução vitoriosa, ia aos poucos penetrando em todos os setores e absorvendo todas as atenções. Apontavam-se rumos novos para o Brasil novo – e a efervescência de idéias e ideais políticos era tal, que até as letras, como instrumento que são também de formação do povo, foram aos poucos se infiltrando das filosofias sociais em curso. Deste período á atualidade, ou seja de 1930 aos nosso dias, a Academia Cearense de Letras funcionou intermitentemente, as duas últimas vezes, para comemorar, em 1939, o centenário de Machado de Assis e, em 1940, para prantear e preitear a memória de Antonio Sales. Sem contacto com as correntes sociais e políticas do país e do mundo, era uma espécie de ‘Sangri-lá’, ‘vale verde’ ou ‘cidade de Is’ da literatura cearense… Durante quase dez anos, permaneceu de portas semicerradas, num arremedo de vida. Hoje, inicia ela o terceiro ciclo de seu curriculum vitae, e o faz com mais independência de atitudes do que das outras vezes em que se reconstituiu e recompôs. Atingida a maturidade, que andar e agir por conta própria. Não foi preciso, como em 1922 e 1929, que o bafejo governamental viesse insuflar-lhe alento e inspiração.Tomou sozinha, aos ombros, a tarefa de as reabilitação e dispôs-se a marchar pelos caminhos que ela própria escolheu, sabendo, de antemão, com Goethe, que nem todos os caminhos são para todos os caminhantes… E, no entanto, conta com o apoio integral do Sr. Governador do Estado, porque S. Excia é daqueles homens públicos valor pode ser aferido pelo apreço que costumam das ás coisas do espírito e da cultura. O fator galvânico desta terceira tentativa de reestruturação é, decerto, o congraçamento, a fusão das suas academias, mantendo-se a denominação com que esta fora batizada na sua sessão inaugural, em 15 de agosto de 1894. Daí, a presença, entre nós, Mario Linhares, o fulgido poeta de ‘Evangelho Pagão’, compreensivo e brilhante critico da História literária do Ceará’, ‘Poetas esquecidos’ e ‘Semeadores’, que traz a este gesto de tanta lucidez e compreensão, do qual resultou a festa espiritual desta noite, os aplausos entusiásticos e a aprovação calorosa da ‘Federação das Academias de Letras do Brasil’. É de justiça ressaltar aqui o trabalho porfiado e indefeso deste artista da palavra, ora em visita á terra do berço que, após 20 anos, amorosamente acolhe e aperta nos braços o filho pródigo, – é justo destacar aqui o formidável esforço que ele desenvolve no Sul, em prol das letras cearenses, no sentido de divulgá-las e prestigiá-las no mais poderoso centro cultural do Brasil. É tarefa se Sísifo, bem sei, porque o Rio, na frase de Humberto de Campos, é uma cidade míope: só enxerga o que está perto… Mas somente força de gigante conseguiria levar o rochedo até o cimo da montanha. Já disse certa vez que, se o Brasil é uma federação política, certamente está muito longe de ser uma federação literária. O Rio é a corte das letras nacionais, e a centralização hipertrófica por ela exercida, no domínio do espírito, apaga, estiola, senão anula qualquer manifestação de vida mental nos Estados. Se é da essência do regime democrático o assegurar a todos as mesmas oportunidades, no campo das letras reina a mais estreita e rígida ditadura: – ‘ditadura de um centro regulador das idéias’, como disse condenado-a, o grande Silvio Romero. Bem haja, pois, a hora harmoniosa que está vivendo, neste instante, a intelectualidade conterrânea. Hora de entusiasmo e de fé; hora de concórdia, congraçamento e fraternidade espiritual. Hora da mais alta beleza moral e mental e do mais requintado sentimento cívico. Hora da cultura, da sensibilidade, do sonho e do pensamento. Hora do Ceará e do Brasil, que esconde como um tesouro todo o patrimônio literário e artístico, no qual radiam e pompeiam Alencar, Farias Brito, Capistrano, Clóvis Bevilaqua, Antonio Sales, como um punhado de sóis atirados pela mão de Deus no firmamento espiritual da Pátria. Hora em que se fundem, miraculosamente, um passado que é sempre Presente; um presente que se projeta luminosamente no Futuro; e um futuro que tremeluz, já, aos nossos olhos, como uma alvorada triunfal que se aproxima…