Poeta e Educador

Mágico Tempo

Índice

I PARTE

O MÁGICO

Sob o clarão da lâmpada,
pensa o Poeta… Em seu cérebro
ulula, geme e agita-se
a angústia, a dor do século.

Em tão reduzido âmbito
mãos crispam-se, almas partem-se.
O mundo, o mundo trágico.
aí ferve em sangue e lágrimas.

Remoinham libélulas,
dragões, panteras, lírios,
no exíguo receptáculo.

Indiferente, a lâmpada
— indiferente e irônica —
banha de luz o mágico.

O MURO

Um – dois – três!
Pensamentos e ideais
dissolvem-se no ar.
Para sempre.

Relógios de músculos
param
Para
sempre.
Balas acertaram
no coração da primavera.

Tombam corpos cálidos,
lábios em flor,
peitos abertos,
sangue escorrendo,
junto ao muro,
para sempre.

Um – dois – três!
As bocas se fecharam
para sempre.
Todos emudeceram
definitivamente.
Para sempre.
– Ninguém mais falará!
Mas o muro fala,
o muro grita,
o muro clama
por um mundo melhor.

O muro é imortal.

POEMA DAS MASSAS

Que vozes são as vozes que ouço em mim,
na praça pública da minha alma de Poeta,
gritando, protestando, blaterando?
São vozes de alucinados ou revoltados,
vozes de súplica ou de cólera,
vozes de bendição ou maldição?
São vozes de operários que pedem emprego
nas ruas das cidades sem tempo e sem alma…
— de homens que pedem oxigênio
no seio escuro das minas de carvão…
— de infelizes que pedem paz
em todos os quadrantes da terra…
— de párias e famintos que pedem amor,
que pedem lar, que pedem luz, que pedem pão.

Na praça pública da minha alma de Poeta
há milhares, há milhões de homens
clamando, protestando, vociferando,
como ondas em fúria num mar de tempestade.

Senhor! os homens bradam, gritam, apostrofam!
Eu ouço o clamor uníssono das massas.
Elas querem uma palavra de justiça e compreensão,
uma palavra definitiva e universal.
Só Tu poderás atender à voz angustiada e trágica dos homens!

Porque Tu és a palavra que cria e que constrói
além do espaço e do tempo,
dentro na Eternidade: “Amai vos uns aos outros…”
Senhor!
és a resposta que os homens buscam fora de Ti
— e que não está senão em Ti!

ANACORETA

Muitos anos viveu na adusta terra,
entre elefantes, leões, tigres, leopardos.
O deserto, em imenso mar de areia,
marulhava em redor, sombrio e cavo.

Vinham da noite vozes abstrusas
de tendas ou de haréns, talvez de tronos,
onde luxúria e sangue se misturam,
taças se partem, como as vidas fogem.

Se rugem feras, há mulheres lúbricas
dançando, ao som de crótalos lascivos,
com o ventre em fogo mais que com os pés nus.

No vórtice dos séculos se somem
príncipes, prostitutas e procônsules,
à sombra milenária de uma cruz…

DANÇA DA LUA

Lua cheia, a face pálida,
passeias no céu risonho.
Se fosses espelho mágico,
refletirias meu sonho.

És um planeta sonâmbulo
e só amor tu inspiras:
de teus raios desce um cântico
que acorda todas as liras…

Despes o manto aurifúlgido
de brilhos finos e tersos
e de teu seio amplo e lúcido
flui leite, em forma de versos.

Sobre opalas e topázios,
ó Salomé nua e fria,
danças a dança fantástica
dos sete véus da Poesia…

TAÇA DO TEMPO

A angústia do homem só – e a tarde triste.
– É um encontro de forma e conteúdo.
E, recessivo, o polvo da luxúria
dorme na rocha da ombridade inútil.

Passa um carro de fogo no horizonte,
rodas de brasas, sobre nuvens velhas.
Pássaros timoratos e brilhantes
aninham-se nas árvores vermelhas.

Faustoso e rubro o céu. E, triste, a tarde.
Da tristeza de nobre catafalco
onde um rei dorme para sempre. Sempre?

E toda a angústia do homem só – transborda
do cântaro de barro, que o comporta,
para a taça do tempo e do poente…

MURAL

Na velha habitação coletiva
os olhos dos inquilinos
brilham, em todas as janelas,
como em vitrina.

Na rua, fora, a rica cidade freme e corre.

Acordado, o monstro de cem olhos
vigia no ventre de outro monstro.

Quem tiver ouvidos de ouvir
poderá escutar a respiração de tantas almas opressas
pisadas pelo mundo.

CONCÍLIO POÉTICO

“Luar, luar
traz pão com farinha
pra dar aos pintinhos
que estão presas na cozinha.”
(Do folclore nordestino)

Os poetas vão deixar a lua.
Reunidos em concílio
decidiram abandonar para sempre
o astro romântico,
que governaram, por séculos e séculos,
como soberanos absolutos.

Lá ficarão apenas São Jorge sem espada
e o seu cavalo exausto,
à espera do Pégaso automático…
A lua já não tem sequer farinha
(aquela farinha branca e luminescente
que víamos cair do céu
quando meninos)
para dar aos pintinhos
que estão presos na cozinha.
Vão deixá-la os poetas
entregue à própria sorte,
como coisa inútil vagando pelo espaço,
a distância.
A lua não serve mais para nada.
A não ser de base para armas nucleares
que poderão, talvez, destruir a terra,
os poetas
e a infância.

LAGAMAR

Homens pescam siris nas águas turvas.
Na água suja
mulheres tristes, lavando roupa, cantam.
Meninos pálidos e alegres
banham se, aos pinotes, na água escura.
Porcos e jumentos bebem, juntos,
da água imunda
empoçada no mangue.
E todos confraternizam
na podridão do pântano
— indefectível e trágico
como um escarro de sangue.

RATAPLÃ

Quando o sol ainda dormia
— acordaram e partiram.

No caminho que cresce sempre,
pés e corações
batem desesperados
o rataplã da miséria.
Chora um menino.
Outro menino chora.
E é como se chorassem
milhões de crianças.

Passa uma vaca
muito magra,
muito trôpega,
urrando, urrando…
Todos vão chorando,
uns por dentro,
outros por fora.
Até o cão, às vezes, chora.

O sol, de chapa,
fere o rosto dos retirantes.
A estrada
vai ficando
para trás.
Já está distante,
tão distante!
E, para frente, não tem fim:
sempre adiante!

Não tem fim.
— Sempre adiante!
Não tem fim.
— Sempre adianto!
Não tem fim …

VESPERTINA

O céu que nos envolve com seu manto,
o mar que se desfaz em verde pranto
e este rio que vem a chorar tanto,
o céu, o rio, o mar — como são tristes

nesta hora de descor e desalento,
hora em que morre o sol e tomba o vento
nos braços da palmeira, sonolento …
Quem, alegre, ao crepúsculo, já viste?

Os pássaros escondem se na sombra
do arvoredo soturno; algo os assombra:
é a noite cujos passos no éter se ouvem …

Tristeza vesperal que o ser constringe!
Serás maior, no areal, diante da Esfinge?
Como serias na alma de Beethoven?

BERÇO E TÚMULO

Vinha de longe aquela voz de criança.
Vinha, das águas ou do céu? Ninguém
havia ali naquela solidão
do rio aberto, sob os astros tristes.

Mas a voz inocente enchia a noite
de uma ternura amargurada e doce.
Era um grito de pássaro ainda implume
pedindo o apoio e o amor da asa materna…

Passam troncos bolando na corrente
como corpos, cadáveres andejos,
dentro da noite, fantasmais e trágicos.

E um berço desce como um ninho, à toa,
por entre os troncos, nas barrentas águas
que vão correndo para o mar e a morte.

PARA ONDE VÃO OS CADÁVERES

Vejo as misérias do mundo
dentro deste vidro mágico.

Passam multidões cativas.
— É a procissão dos cadáveres
que em si mesmos têm seus túmulos:
mortos por dentro e por fora,
mortos no corpo e no espírito,
de uma feia e triste morte,
que não é porta da Vida.

Ninguém fala nem protesta
no silêncio marcial.
A todos — a consciência
o dragão rasgou com os dentes
no seu repasto total.

Os cadáveres desfilam.
E, procissionalmente,
no silêncio oficial,
vão seguindo,
vão levados
para … para o não sei onde.

Para onde vão os cadáveres?

EPISTOLA FRATERNA

Para escrever te esta carta, meu irmão,
não preciso de palavras, mas de gestos.
Nem de tinta ou de máquina, mas de alma

O mundo vive cheio de vocábulos vazios.
Repleto de mensagens inúteis:
porque nada comunicam,
porque não aproximam os homens,
porque não traduzem, de uns aos outros,
o seu universo de desejos e paixões,
de ansiedades e esperanças.

Jorram termos cabalísticos
das assembléias monstruosas…
Paz, Fé e Amor
deixaram de ser palavras honradas,
palavras autênticas,
palavras de vida eterna.
Quando acaso as empregam,
através da semântica da astúcia,
os embaixadores da morte
transmudam nas em sinais de ódio e de sangue.

Escrevo te esta carta, meu irmão,
para dizer te que não te escrevo,
mas te entendo, porque te amo.

BALADA DO ENFORCADO

Ao sair, feliz, à noite, da casa da noiva, o jovem foi
alcançado pelo laço que lhe atiraram de um caminhão
em disparada (Dos jornais da época).

A noite era bela e estrelada.

Não havia somente estrelas na noite:
havia ternura e encantamento.

No seu enlevo de enamorado,
despregou se da terra — e criou asas.
Sentiu, em toda a plenitude,
a poesia da noite rutilante.

Sonhou integrar se na harmonia profunda
do universo estelar.
E falou aos homens como a irmãos,
evangelicamente.

A noite estava semeada de bondade e amor.
Mas no coração dos homens
só, havia ódio,
maldade
e negror.

O laço
que veio
rodando
no espaço
pareceu-lhe um abraço
da noite radiosa,
misericordiosa.

Mas o laço
que girava
no espaço,
trágico e forte,
era o laço da Morte
— o abraço da Morte…

MONOTONIA

Na tarde frágil de porcelana velha
desenham se nuvens indistíntas
como se fossem irreais.
Tudo é fugaz, efêmero, fugidio …
Até o tempo parece fundir se no vento lento
que agita, molemente,
as pétalas das rosas morrentes
e a penugem da grama pálida.
E a tarde se desfaz em pedaços cinzentos
com pingos amarelos.
Fosca, monótona, medíocre.

MARINHA EM NEGRO

Sobre as vagas
pressagas
em sobressalto
— vem a jangada
abandonada
do mar alto!

— Não há peixes no samburá!

Só os restos da tormenta
nas sombras da noite má.

Onde os gritos dos jangadeiros,
em luta com o velho lobo
a rugir sinistramente
nas sombras da noite má?
Não há peixes no samburá.

Corre o vento
violento
pela praia,
sobe o morro.
Vai uivando…
Leva um segredo:
— Socorro!

Vento lúgubre,
soluçais
toda a dor que vem do mar alto
na jangada
abandonada
nas sombras da noite má.
— Não há peixes no samburá!…

FUGA Nº 1

O silêncio que cai, misteriosamente,
da tarde feita de sombra,
pisa com pés de lã cor de cinza
a doçura da vida que ainda pulsa
e
no silêncio
ainda cria a beleza
em pensamento
e
sonho.

SONETO

Adolescentes pálidas e estranhas,
que andais à sombra de altos eucaliptos,
túnicas inconsúteis se rasgando
nos dentes da luxúria, em noites ébrias.

Raparigas em flor de um mundo velho
sem amor, mas com sexo e bomba atômica.
E bombas de hidrogênio, bombas de ódio,
que ameaçam continentes, mesmo a Espécie…

Por vossas mãos tão várias e volúveis
passarão os pecados e os tesouros.
E não se erguerão mais, postas e unidas!

Soltas no mundo, para onde ides?
Como rejuntareis os mil pedaços
das túnicas rasgadas pelas feras?

LOUVAÇÃO A PORTUGAL

Quando o mar versos me inspira
com a sua imensa tristeza,
soluça na minha lira
a saudade portuguesa…

Veio naus de velas pandas
por sobre as ondas bravias
que trazem das outras bandas
saudades e nostalgias.

Vejo antigos marinheiros,
homens de rudes feições,
que desfilam, sobranceiros,
na epopéia de Camões.

Heróis soberbos! gigantes
que, no mar, fazem milagres.
— São pilotos e almirantes
da velha Escola de Sagres.

Portugal! que magnetismo
irradia a tua história:
num poema de heroísmo
uma legenda de glória!

E sobe da voz do oceano
um louvor alto e profundo
ao grande povo que, ufano,
mundos novos deu ao mundo.

ODE INACABADA

Jangadeiro do Ceará!
tu escreves, de sol a sol, no mar revolto,
a história viva de uma raça eterna,
a epopéia simbólica de um povo.
Os quatro paus da tua jangada
são a tua cruz e o teu Tabor.
Quando, em torno de ti,
ondas em fúria abrem as fauces como feras
— não tremes, não recuas, não vacilas,
desafiando a cólera das vagas!
Jangadeiro — herói de batalhas cotidianas!
quem te olha de longe, com assombro,
vê em ti um bronze que fala e que caminha,
e não uma criatura como as outras,
do mesmo barro frágil e imperfeito.
No entanto,
no arcabouço de teu peito,
vive a bater,
vive a pulsar
o mesmo coracão generoso e valente
daquele jangadeiro singular
que, um dia, fechou, com mão de ferro,
— para o comércio dos escravos negros —,
a porta do oceano.
E foi — no reino soberano —
Dragão do Mar!

PAÍS DO FUTURO

Onde ficaste, Ariadne,
com teu novelo de lã?
Estou sem guia, sem rumo,
neste imenso labirinto,
sozinho com o Minotauro
neste dédalo sem fim.

O monstro vai devorar me
com as mandíbulas enormes,
vai o peito estraçalhar me
com as suas garras disformes,
vai moer me, triturar me,
enquanto, Aríadne, dormes
lá fora, em plena manhã.
Dormes, dormes, dormes, dormes,
no engano da vida vã,
a primavera nos lábios
entreabertos, de romã,
das mãos abertas — caído
o teu novelo de lã…

E o meu destino perdido
no terrível labirinto
cuja saída não sei:
meu destino onde perpassa
a sombra nobre de um rei.
Depois vem ordem, progresso,
liberdade, nova lei,
o futuro, o meu futuro,
que se anunciou grandioso
e eu ainda maior sonhei,
— perdido no labirinto
cuja saída não sei …
Que é do novelo de lã?
Ariadne! Ariadne!
Eu quero ter amanhã!

Agosto de 1963

ANGUSTIADO POEMA DA PÁTRIA

Minha Pátria,
onde estás?
Vejo te em sonho
mais bela do que em realidade és.
Quero te no coração
e foges ao meu afeto.
Ouço te — e não te entendo mais.
Que palavras aprendeste
noutras línguas que não sei?
Tua linguagem não te pertence:
falas por alheias bocas
e dizes o que não trazes
dentro de ti, no teu seio.

Pátria!
já não sei mais cantar te,
em versos feitos com o teu ritmo e o teu sangue
e com as puras e líricas palavras
do meu amor e da minha ânsia.
Onde estás, que não te reconheço?

Volta te para dentro de ti mesma,
procura no recesso de teu ser
a tua forma própria de viver.
Não vês que teu corpo imenso
precisa de uma alma ainda maior?
Busca, no teu passado,
a luz do teu presente.
E manda um raio desta luz para o teu armanhã,
em que desejo rever te e reencontrar te
com os olhos de meus netos
— e dos filhos de meus netos —
novamente moça, e forte, e clara, e bela,
no milagre da tua eterna alvorada.
Porque tu estás no sempre, ó Pátria minha!
Minha Pátria amada!

12 de dezembro de 1963

II PARTE

ESTUDO Nº 1

No espaço
estão as cousas que perecem,
as cousas que não ficam,
as cousas do espaço.

Tudo o que vem do tempo
eterniza-se no tempo.

RECÔNDITA

Cada manhã eu te encontro
e todo o dia me foges.
Na tua cápsula de nuvens
entras em órbita – e vagas
sobre mil mundos suspensos.
Descobres outros espaços
onde o espaço se dissolve.
Atravessas outros tempos
onde o tempo se dilui.
De todos os horizontes
recolhes perspectivas.

Arco-íris entre os dedos,
estrelas entre os cabelos,
nos seios conchas de nácar
que mudam de forma e cor…
Acendes clarões precípites,
acordas noturnas músicas
de cidades oceânicas
onde há pontes invisíveis,
mas sangrentas de corais.
E sobes pelas alturas
que não terminam jamais.

Abro os olhos – não te vejo!
Fico só na solidão
silenciosa de mim mesmo.
Se fecho os olhos, no entanto,
eu te descubro, te vejo,
escondida no recanto
mais escondido do ser.
E a tua beleza é tanta,
é tanta a tua presença,
que às vezes eu fico cego
pra não deixar de te ver.

MISTÉRIO AUGUSTO

Abro minha alma para as vozes puras
que vêm da infânci’a no perfume suave
das flores murchas escondidas neste
livro de rezas que me ofereceste.

ó Mãe querida, minha doce e terna
professora de místicos exemplos
de ternura extra humana e de divinos
transportes, diante do Mistério Augusto

que leva as almas através dos mundos
siderais — áureos mundos luminosos,
errantes pelos céus como se fossem

idéias de ouro do Supremo Espírito
que os concebeu, arremessando os pelos
quatro cantos do Espaço, além do Tempo…

ESTUDO No. 2

Um poema não se escreve sem palavras,
mas, sem palavras, um poema vive,
como, sem forma ainda, um ser humano
no mistério genético da espécie…

Vive e arrebata o espírito e os sentidos,
corre no sangue, pelos nervos passa,
fluido magnético, vibração anímica,
raio de um sol perdido no infinito…

É a vida embrionária do poema.
Depois a forma vem para vesti-lo:
e o verbo se humaniza e se faz carne.

Como nasce uma criança nasce o poema.
Da inspiração do poeta ei-lo que irrompe
– para um claro destino ou sorte escura…

MÃE

Prova de retrato
sem retoque
esquecida num livro,
como pétala murcha,
triste e sem cor,
que ainda guarda
indefinível,
imperceptível
(mas ainda guarda)
um perfume de flor…

Prova de retrato
tão viva
quanto uma fotografia colorida,
trazes-me, numa idade em que era moça e bela
e tinha olhos claros e lindos,
– olhos que a velhice vai, aos poucos, apagando -,
aquela que foi sempre minha
e de quem sempre fui.
Desde a primeira emoção de amor
de que nasci.
Aquela
que está na vida que ela me deu
em sangue,
sonho,
leite,
poesia
e alma,
– minha mãe!
– minha mãe!

CANÇÃO DO RAIO

Quando o sol sumiu
no céu muito escuro
de nuvens pejadas
de chuvas e de chamas,
o menino sentiu
saudades do rio,
seu rio tão doce
— Salgado de nome —,
correndo entre moitas
de verde mofumbo,
curvas ingazeiras,
árvores sombrias,
correndo, correndo…
Correndo, correndo
com a infância feliz

do ardente menino
que sonhava viagens
por terras estranhas
com jardins de estrelas
suspensos nas nuvens
do mundo impossível
de um menino poeta.
Poeta sem letras,
sem livros, sem lira,
sem mestre, sem nada.
Um poeta só de alma.
Mas de alma que canta,
que freme, que chora,
qual fonte a fluir
no meio de pedras,
tímida e sonora.

O raio rolou
das nuvens pejadas
de chuva e de chamas.
Tombou o menino
na terra molhada.
O fogo envolveu lhe
a roupa, os cabelos.
Deixou cicatrizes
no corpo inocente.
Marcou para sempre
a vida, dos seus.
— E a alma do menino?
Ficou mais cheia,
mais cheia de canto,
mais cheia de rimas,
mais cheia de Deus.

SONETO DA NATIVIDADE

Esperei que viesses numa nuvem
nimbada de ouro, pelo espaço azul,
e por um raio de luar descesses,
avezinha, ao teu ninho cor de rosa .

Ouvi músicas soltas nos espaços
e vi estrelas novas no infinito,
no dia em que chegaste, como o fruto
que eu esperava na árvore da vida…

Do seio da mulher que divinizas,
porque lhe deste a própria eternidade,
surgiste, astro inocente, lírio humano.

O coração do poeta é todo pluma
para acolher te, para aconchegar te,
meu Rei! meu Filho! minha vida em flor!

POETA

Afundo no passado como num rio
e saio na praça da matriz de Lavras da Mangabeira,
onde me vejo menino,
mais poeta do que hoje e sempre,
soltando um papagaio de papel de seda
que descreve parábolas multicores no céu azul.

E de repente
vira pássaro
e vai cantando
pousar na flor recém aberta da tarde.

ESTUDO Nº 3

Na maior intimidade com as coisas e os seres,
nesta doçura de antemanhã do verão,
sinto me disperso na luz, no vento e no ruído do mar,
que vem de longe, em ritmo de embalo,
na cantiga milenar das ondas quérulas …
Sou uma partícula viva deste corpo imenso.
Um átomo em que o mundo se concentra.
Tenho, como um espelho mágico, o poder
de refletir o que me cerca e envolve,
incorporando tudo à essência de meu ser.

CARTA ABERTA

Caro Paulo Bonfim,
na transcendência
desta manhã de nuvens surrealistas,
recordo o nosso encontro desencontro
numa esquina do mundo, em pleno dia.

Passavam homens práticos correndo
sobre o pó, das calçadas e do asfalto,
todos em busca do Bezerro de Ouro,
oculto nalgum ponto do planalto…

Os poetas cantavam rua afora,
no tempo, sobre o tempo, contra o tempo.
E a fervente cidade, ei la sonora.

Ficou no dia azul o canto claro
rompendo, entre dragões, a selva humana,
e vem e vai, de norte a sul, no espaço.

LEGENDA

Meu filhinho recém nado,
tão frágil, tão pequenino,
tu hás de ter um bom fado,
um grande e belo destino.

Vendo te no berço, ao lado,
multas cousas imagino,
ante o teu vulto minguado,
ante o teu corpo franzino.

Serás um santo? um poeta?
Com a vida cheia de glória
e a alma de luz repleta?

Desprezo honras, pompas, brilho
Basta-me, na tua história,
esta legenda: Meu Filho!

BALADA DO CINQUENTÃO

Fatiguei me tanto, Amada.
Viajei cinqüenta léguas
por essa fragosa estrada
que toda, a pé, percorri.
Dentro da alma fatigada,
dos tesouros que juntei,
não resta nada? A lembrança
(por que não dizer saudade?)
de tudo quanto gozei,
de tudo quanto sofri.

Dos beijos que te ofertei,
dos versos que te devi .
De um rio que atravessei
inda criança… e perdi
Claro sino que escutei
na cidade em que nasci.
Doces rimas que rimei,
quando menino — e esqueci.
Das gerações que eduquei,
pelas quais tanto lutei
e das quais tanto aprendi.
Dos tempos da mocidade
ambiciosa, em que sorri
embalado na esperança
de um bem que nunca se alcança,
de um futuro… que não vi.

Oh! Futuro! espelho mágico!
montanhas de ouro, brilhantes!
As rosas caem do céu,
saltam estrelas da terra,
abre se o mar em corais …
Tudo um sonho evanescente.
Hoje só tenho passado.
Hoje só tenho presente,
Mais passado que presente.

Futuro não tenho mais.

FUGA Nº 2

Versos,
que andais
pelo espaço
como pássaros
voando à toa,
vinde, pousai
nos galhos tristes
da árvore velha.
Enchei de cânticos,
ruflos de asas,
arrulhos líricos,
cores aladas,
a casa pobre
que meu sonho habita.

Vinde, pássaros de luz.

Versos,
pedaços de Deus.

FUGA Nº 3

Sentir o tempo
tugir
na clepsidra interior.
Gota a gota,
vai se escoando …
Tempo intangível, tempo volúvel!
Não, não pode haver
nada que seja mais doridamente amargo e triste
que sentir se envelhecer

SONETO DO RIO

Ó rio velho e bom da minha infância,
que corres sem parar, que corres sempre
na saudade da criança que ainda vive
desterrada no fundo do meu ser.

Ó meu Rio Salgado, como és doce!
A esta distância, que te azula e amansa,
e que te empresta músicas tão ternas,
aos meus ouvidos, onde escuta a criança.

Teus remoinhos, espumas e baiseiros,
as árvores de guarda em tuas margens,
tuas enchentes avassaladoras …

Vejo te agora represado no ar.
Rio! nessas conversas, ao crepúsculo …
Continua a correr… quero chorar…

É BOM SER BOM

Meu pai e meu amigo! eis me a teu lado,
a rezar. Mas não ouves o que digo.
Eu tenho o coração despedaçado
de saudades, meu pai e meu amigo!

Fui, desde criança, todo o teu cuidado.
Cresci à sombra desse afeto antigo.
Afinal, era um só. nosso passado,
porque, ó pai, envelheci contigo.

Sereno e justo, Deus te fez um forte,
ante as ingratidões de todo grau
que te feriram, sem mudar te o norte.

Com a tua vida do mais puro tom,
tu me ensinaste quanto é mau ser mau
e me provaste quanto é bom ser bom!

ESTUDO Nº 4

I
Momento de elevação do espírito até Deus.
Mundanidades e concupiscências
dispersam se, dissolvem se na ânsia
com que do nada buscamos, aflitos, o Absoluto.

II
Somos carne, paixão, luxúria, instinto,
antes de sermos sombra, pó e cinza.
Ah! Imaginação vela de asas pandas
que o desejo impele para as viagens loucas…

FUGA Nº 4

Este momento que vivo
é o momento que passa,
é minha vida que flui,
que transcorre, que deriva
feita, de surpresa e de ânsia;
são pedaços de mim mesmo
que vão pelo tempo, a esmo,
como os troncos, restos de árvores,
que desciam na corrente
do rio da minha infância…

SINFONIA

Vem pela noite um cântico profundo
que parece saído das estrelas.
Rola entre as nuvens como um rio etéreo
de águas azuis em músicas perdido…

Vem pela noite o cântico imortal
que brotou da alma estranha de um poeta
num momento de humana plenitude…
O grande amor da vida! o grande amor!

Agora a lua, as árvores, o vento,
o mar, a noite, a solidão e a treva
estão plenos de sons — e cantam, cantam!

O mundo todo se desmancha em notas
musicais… Porque o mundo se resume
no cântico imortal que vem da noite.

ORAÇÃO

Senhor!
afastai me o desejo
de querer encher o minuto que passa
com os meus egoísmos, ambições e ânsias.
E a preocupação de ser prático, dinâmico, eficiente.
No meio das coisas perecíveis
dai me a coragem
de libertar me dos meus interesses cotidianos.
Livrai me das minhas necessidades, Senhor!
Não quero ser mais nada.
Não serei mais nada.
Quero ser no Ser.

ETERNIDADE

Nunca mais escrevi um grande poema
(grande pela temática afetiva)
em que pusesse a alma, em carne viva,
e mostrasse do amor a face extrema.

Que tivesse por símbolo e por tema
toda aquela volúpia transitiva
egressa da noite íntima — e cativa
no branco labirinto que blasferna

e se projeta em longos horizontes
onde o amor, água ou óleo ou pranto, escorre
transformado do ser em vivas fontes…

Que blasfema e se eleva, e freme, e cria,
no barro quente, — a forma que não morre
porque no tempo colhe o eterno dia…

POESIA

Nem sequer o Natal fez que voltasse
ao lar azul de onde fugira um dia,
sem que deixasse, ao menos, nos meus olhos,
o pó de ouro das asas refulgentes.

Vejo a fugindo pelo céu em chamas
no multicor instante do crepúsculo.
Vejo a vagando sobre as ondas túmidas
Como seios em flor para nutri la…

Ei la a sumir se, ao longe, numa réstia
tímida de luar que vem surgindo
como suspiro último do sol.

Em vão aguardo o seu regresso. Tenho
cabelos brancos, olhos fatigados.
Mas espero por ti, amor, Poesia!

CANTIGAS

Guardo na alma a ressonância
de uma cantiga que ouvi
na minha distante infância
e nunca mais esqueci,

inda recordo a fragrância
de cravo e de bogari
que, na manhã cheia de ânsia,
ao escutá la, senti.

Eram vozes de meninas:
“No céu, no céu”… E eu guardei
essas vozes argentinas:
“Com minha mãe estarei”…

Hoje minha mãe é morta.
Cumpriu se do tempo a lei.
Mas a canção me conforta:
“Com minha mãe estarei”…

SONETO PÓSTUMO

Se o coração parasse de repente,
marcando o fim desta existência inglória,
apenas uma sombra merencória
recordara um poeta de alma ardente.

Uma sombra sem cor, sombra somente…
Eis tudo a registrar daquela história,
que não teve esplendor nem teve glória:
foi a história comum de toda a gente.

E os homens cada vez mais apressados
ouvidos não tiveram, deslumbrados,
para o verso final do pobre Orfeu.

Só as estrelas, que ele amara tanto,
entoaram pelo céu um alto canto
em louvor do poeta que morreu.

LIRICA

Trouxeste me uma rosa rubra em pleno outono.

Neste pedaço de primavera
volto ao país das múltiplas alvoradas.

Canções, beijos, ternuras, sortilégios,
tudo me vem nas pétalas dessa flor vermelha.
E ante a rosa, milagrosamente, refloresce
o velho jardim outonal,
que ficou cheio de seu aroma.

SONETO DE UMA NOITE DE NATAL

Enquanto a noite vem baixando a medo
sobre os casais humildes, sobre os campos,
sonhos sobem da terra aos céus imensos
por uma escada de ânsias e de zelos.

Sonhos azuis da humanidade… Crenças,
votos, clamores, súplicas e apelos!
Agora, fulge todo o espaço — cheio
de astros que resplandecem como bênçãos.

Descem consolações de cada estrela
que arde e corusca no âmago da noite.
São vaga lumes em sombria tela…

O espírito se arroja no Infinito.
Oh! Grande Deus, como é pequena a noite
para a misericórdia sem limites!

FUGA Nº 5

Eu e a poesia somos mais do que irmãos gêmeos.
Mais do que xifópagos.
Somos a mesma forma,
o mesmo osso,
a mesma essência,
o mesmo sangue,
o mesmo hálito.

Eu sou poesia.

BEM AVENTURANÇA

Muitos sonhos espalhei
pelos caminhos.
Muitos ritmos acordei
nas coisas e nas criaturas.
Muitos versos ofertei
aos famintos de ilusão.

Fui peregrino de surrão aberto:
o que levava para o meu sustento
deixei cair sobre as pedras da estrada,
mas prossegui cantando,
cantando,
em altas vozes interiores,
— o hino da fraternidade e da renúncia
na bem aventurança da Poesia.

TESTAMENTO

Legarei aos pássaros,
que foram meus professores de poética,
às flores,
que me deram lições de renúncia e doação,
à água,
que me ensinou a ser simples, sendo sonora,
ao sol, ao mar, ao vento, à montanha e às estrelas,
onde busquei inspiração e ritmo,
— tudo o que há em mim, como seu reflexo,
devolvendo a poesia que me deram
em luz,
em cor,
em música,
em perfume…

Se a sorvi da natureza,
hei de deixá la em tudo que me envolve,
para que minha lembrança permaneça
no poema que não foi escrito,
mas ficou
vibrando
no tempo.

PRESENÇA

Antes de nascer
Tu és.

No berço vivo em que dormes
és um sonho de carne
ou a carne de um sonho.
Tu és.
No pensamento dos que te amam,
no sangue da que te embala no ser
Tu és.

Ouando ainda não deste o primeiro vagido
nem tentaste a primeira sucção
no seio que te aguarda,
pleno de vida,
farto de leite,
cheio de amor
— todo mãe!
Tu és.

Ninguém te conhece
porque ninguém jamais te viu.
E todos te querem
e ansiosamente te esperam.
Oh! presença invisível!
Tu és.