Cônscio da grave responsabilidade que lhe compete no processo de desenvolvimento cultural do Ceará, o Governo do Estado, por intermédio de sua Secretaria de cultura, está vivamente empenhado na meritória tarefa de promover e estimular a expansão das ciências, das letras e das artes em nosso meio, haja vista a excelente e vasta programação, ora levada a efeito, que abrange todos os setores da Cultura.
No elenco dessas importantes iniciativas de que se ocupa atualmente a pública administração figura, obviamente, o plano editorial, que tem o alevantado propósito de divulgar as obras de real valia de escritores cearenses, reeditando-as ou editando-as, de sorte a propiciar à comunidade alencarina e, especialmente, à juventude, a sadia oportunidade de melhorconhecer as idéias generosas e as belas concepções do espírito, em cujos ensinamentos devemos buscar, incessantemente, inspiração e força para contribuir, sempre e cada vez mais, para a prosperidade e a grandeza da Terra da Luz.
Dentre essas obras de valor inestimável, que honram e dignificam as tradições de inteligência da gente cearense, avulta a produção literária do grande e inolvidável poeta Filgueiras Lima.
É de primeira evidência que, ao oferecer as razões da edição desta Antologia Poética, que ora vem a lume sob os auspícios do Governo do Estado, não me cabe, como titular da Pasta da Cultura, analisar a obra portentosa do poeta excelso.
Ademais, o poeta excelente, o escritor admirável, o intelectual renomeado, o orador brilhante, o professor emérito, o educador inexcedível, o administrador proficiente e o homem público invulgar, enfim, tudo isso que fez de Filgueiras Lima uma das expressões mais fulgurantes e uma das glórias mais altas da nossa terra já foi suficientemente louvado pela crítica mais abalizada.
De outro ângulo, sem embargo do reconhecimento e da admiração que devoto a essas qualidades realmente significativas, e firmemente convencido de que a verdadeira marca que define o homem, ensejando-lhe o respeito de seus coevos e assegurando-lhe, no tempo e no espaço, a lembrança sempre viva de seus feitos, que a posteridade assim imortaliza, não está apenas no seu valor intelectual, mas, antes e sobretudo, nas virtudes morais que soube imprimir aos atos de sua vida, prefiro ressaltar, nesta oportunidade, a extraordinária figura humana de Filgueiras Lima.
Com efeito, conheci o consagrado autor de Festa de Ritmos no início da década de 40, quando ingressei, como discente, no então Instituto Lourenço Filho, que ele fundara com o não menos insigne e inesquecível Paulo Sarasate, e que viria a ser, desde a sua instalação até hoje, na sua marcha ascensional, uma das melhores e mais conceituadas casas de educação desta metrópole, sabido que o Colégio Lourenço Filho se caracteriza pela obra de renovação pedagógica que implantou em nossa terra.
Inicialmente seu aluno, posteriormente seu companheiro nas lides do magistério, na direção do Colégio Lourenço Filho e no Conselho Estadual de Educação, durante mais de 20 anos desfrutei o privilégio de manter com Filgueiras Lima uma sólida e inquebrantável amizade, caracterizada pela profunda afinidade espiritual, e assim pude testemunhar, no contato longo e diuturno, a nobreza de caráter, a elevação de espírito, a grandeza de coração, a imensa bondade, a renúncia espontânea das coisas materiais, a elegância e suavidade de maneiras, a imperturbável serenidade, a inabalável coerência, o acendrado patriotismo, a intrepidez moral com que pregava e defendia suas crenças e seus ideais, a permanente lealdade, a constância nas amizades, a irreprochável conduta de chefe de família, em síntese, uma vida essencialmente cristã e, por isso mesmo, inteiramente dedicada aos ideais mais nobres e sublimes.
Fiel, sempre e intransigentemente fiel ao seu destino de poeta e educador, e, portanto, consciente da sua missão de mensageiro da verdade universal e eterna, de cujo apostolado jamais se afastou, Filgueiras Lima fez do evangelho do Amor, da Caridade, da Ciência e da Beleza a razão de ser do seu canto, da sua prédica, da sua vida.
Destarte, a divulgação de suas obras, que se acham esgotadas, se impõe de modo imperativo, como exigência mesma da Cultura, e, o que é mais importante, a fim de que as novas gerações possam assimilar o humanismo das perenes lições que o mestre nos legou, ora exaltando, como ninguém, o Ceará e a sua gente, ora pugnando, com entusiasmo crepitante, em favor da paz, da liberdade, da democracia, da solidariedade entre os homens, do respeito à dignidade humana, numa palavra, da construção de um mundo novo, mais digno e melhor.
Por tudo isto, o Governo do Estado mandou editar esta Antologia Poética, sinceramente persuadido de que sua deliberação, além de expressar justa homenagem à memória do filho ilustre, que prestou assinalados serviços à nossa terra, corresponde aos mais legítimos anseios do povo cearense e aos superiores interesses da Cultura.
Quando sucedi, sem substituir, meu amigo Filgueiras Lima na Academia Cearense de Letras, tentei reconstituir sua vitoriosa carreira literária, tão bem iniciada com um livro que obteve Menção Honrosa da Academia Brasileira de Letras, aquele Festa de Ritmos, que imediatamente projetou nas letras nacionais seu nome de poeta.
Daí por diante, depois dessa estréia luminosa, a poesia, que era seu fado, seu cotidiano, sua vida, seu tormento, sua glória seu pão, seu vinho, seu fel, teve nele um constante, incansável cultor, que conseguiu conservar na sua obra a mesma linha de grandeza e de coerência, o mesmo zelo e o mesmo devotamento.
Seguiram-se Ritmo Essencial, Terra da Luz, O Mágico e o Tempo e Jardim Suspenso, festivamente acolhidos pela crítica.
É que Filgueiras Lima tinha uma visão global e particular do universo, voltado para os grandes problemas existenciais que afligem a humanidade, identificado, de pensamento e de coração, com os sofrimentos alheios que lhe feriam gravemente a sensibilidade e se refletiam nos seus versos.
O poeta abordou os temas mais diversos: o drama das nossas secas, o heroísmo anônimo do nosso homem do campo e do mar o comoviam como a tragédia da guerra, “as crianças órfãs de Stalingrado, as mulheres sem marido de Lídice, as virgens sem amor de Singapura, os homem sem liberdade dos campos de concentração”.
Foi sobretudo um artista voltado para esta terra nossa, para sua gente combativa e obstinada, para os humildes, os tristes, os deserdados. Nos seus versos passam pescadores de siris, mulheres tristes cantando enquanto lavavam roupa na água suja, meninos pálidos e alegres, o jangadeiro, o caboclo, o seringueiro, Um artista de olhos abertos para a natureza transfigurada pela sua palavra, transposta com emoção para o papel, com a verdade e a beleza das coisas eternas. Um lírico, um patriota, um místico, um esposo cheio de amor, um pai cheio de ternura, um amigo feito de compreensão e solidariedade. Um poeta, no melhor sentido da palavra.
Já assinalei e repito que todos estes ângulos da sua alma tão rica de tonalidades, todos estes cantos de menestrel apaixonado pela vida, vêm numa clara linguagem que permite inteligência fácil, interpretação lógica, vêm na linguagem adequada de quem conseguiu o domínio vocabular, a utilização exata dos jogos verbais, o justo emprego de recursos virtuosísticos, que entram no processo de composição literária denunciando fiel captação, assimilação do fenômeno poético. Vêm sobretudo no melhor espírito romântico, pois romântico ele nunca deixou de ser, apesar das suas experiências néo-modernistas. E acrescento e sublinho sua força na elaboração do soneto, em que foi um mestre e de que cito, como exemplo maior, seu belo Soneto Póstumo. Esta Antologia traz uma seleção feita com inegável bom gosto, com amor e inteligência, reunindo poemas representativos da obra de Filgueiras Lima, abrangendo sua temática tão diversificada.
Pastor do seu rebanho de estrelas que ele tanto amou, que marcaram desde cedo seu destino, que o entoaram pelo céu um alto canto em louvor do poeta que morreu. “, nauta de mares impossíveis, navegou no mistério azul de todas as manhãs que o acordaram para seu ofício de jogral e de mestre.
Foi guia, caminheiro, foi mensageiro e senhor, foi palavra, foi sino, foi voz, viveu, amou, sonhou, sofreu, cantou, ajudou. Foi poeta.
Louvada seja, pois, a feliz iniciativa da edição desta Antologia, para que as novas gerações conheçam melhor Filgueiras Lima, para que aqueles que o tiveram como Professor continuem em contato com sua presença imperecível, para que os moços, que ele amou, ensinou, orientou, como educador, aprendam a poesia de quem soube, como o poeta mesmo confessa, espalhar sonhos pelos caminhos, acordar ritmos e ofertar versos aos famintos de ilusão.