Lí não sei onde que morre um pouco de nós em cada amigo nosso que desaparece…
Ha uma grande e profunda verdade nessa melancólica sentença.
Quando levamos ao túmulo um verdadeiro amigo, lá deixamos com êle, sepultos na mesma cova, os sonhos que sonháramos juntos, ilusões, confidencias e ideais comuns, partículas da nossa vida, pedaços do nosso ser, um pouco, ou um muito, de nós mesmos …
Soares Bulcão, José Pedro Soares Bulcão, vinha de uma geração bem distanciada da geração a que pertenço. Tal era, porem, a sua agilidade mental, que jamais se transformou num falso contemporaneo ou num daqueles “anacronismos vivos”, de que fala agudo psicólogo americano. Manteve‑se em dia, sempre, com a mentalidade da sua época; compreendeu e acompanhou a marcha evolutiva do século que êle viu nascer. Por isso, quando a morte o subtraiu ao nosso convívio, Soares Bulcão, entrado já quasi na casa dos setenta anos, contava entre nós, seus amigos e confrades, velhos e novos, com aquela estima que só os caracteres dignos despertam e aquela admiração que só os talentos legitimas provocam.
Quanto a mim particularmente, juntei ao consenso unânime das rodas literárias o culto afetivo que lhe consagrava e ainda consagra a família em cujo seio eu fui encontrar, como diria o poeta, a outra metade da concha bipartida do meu coração … E essas circunstancias, intelectuais umas, sentimentais outras, ligaram‑nos de tal maneira, pesar da diferença de idade que nos separava, e por tantos modos e razões nos identificaram, que eu senti realmente, ao vê‑lo partir para a viagem suprema, ir‑se com êle, para sempre, um pouco, ou um muito, de mim mesmo.
Evocando‑o, nesta noite que a Casa Juvenal Galeno dedica à sua gloriosa memória, tenho o impressão de que vou descobrí‑lo aí, entre os que me estão ouvindo, pois, como afirmou Bilac, num dos seus sonetos mais belos e perfeitos “a saudade é a presença dos ausentes”.
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Soares Bulcão não foi nenhum poeta improvisado e mecânico; um destes versejadores artificiais que exuberam, aqui e alhures, como cogumelos. Não fazia verso apenas porque sabia contar as sílabas poéticas. A sua veia de rimador não fluiu da rocha inerte de um tratado de metrificação.
Foi poeta porque nasceu poeta. No seu belo livro inédito “Heliantos” ‑ livro capaz, por si só, de consagrá‑lo como filho legítimo das Musas ‑ encontrei em duas quadras admiraveis, intituladas “Ideal”, a explicação do ideal por que se bateu, a prova melhor da sua predestinação poética. Ouçamos o que êle diz na mesma lingua em que os deuses, no Olimpo, se entendiam:
“Preso à rocha ou sob o lenho,
Novo Cristo ou Prometeu,
Do barro vil donde venho,
Vou sempre em busca do céu;
Ande por vale ou por brenha,
Entre abrolhos e escarcéu,
Mesmo assim não ha quem tenha
Mais ilusões do que eu!”
E porque não havia quem tivesse mais ilusões do que êle, fez voto de obediencia perpétua a Apolo, tomou da lira e tangeu‑a fascinadamente, embalando‑se na música que os seus dedos faziam jorrar das cordas de mágico instrumento.
Néo‑simbolista e néo‑romantico, apresentando, aqui e ali, algumas notas parnasianas e até mesmo clássicas, Soares Bulcão foi um poeta de nobre e fina estirpe. A armadura sintática e rítmica de suas estrofes revela um artista que conhecia perfeitamente os “materiais estéticos da composição”, segundo a expressão clássica de Lessing.
Já em 1909 escrevia êle estes impecaveis e musicais alexandrinos em que expõe a sua concepção de arte:
“Trabalhe e eleve o artista o estilo alto e preclaro,
Em cada simples frase em que medite e escreva,
Ponha a opulência astral de um rico escrínio raro;
Mas nunca oculte à estátua, a quem seu verso anima,
A plástica nudez que a imortaliza e eleva,
Com os requintes da Forma e os ouropeis da Rima”.
Explorou os mais variados metros, indo da redondilha menor ao alexandrino parnasiano com hemistíquios e rimas raras e opulentas, como nos sonetos “Mater” e “Curandeiro”.
Mas, independente em tudo, Soares Bulcão tambem o foi em literatura.
Não se prendeu jamais a qualquer escola literária nem se deixou algemar por nenhuma das teorias estéticas de seu tempo. Não lhes deu, porem, de todo, as costas, numa atitude opiniática e vulgar de ignorante; antes retirou de cada uma o que lhe pareceu mais acorde com as tendências naturais de seu espírito e as exigências afetivas e morais de seu temperamento.
Infelizmente, a política – deusa de encantos irresistíveis – atraiu‑o tambem e lhe roubou o melhor quinhão do espírito, na fase em que, tendo alcançado a maturidade plena, seu cérebro fecundo, depois de abrir‑se em flores delicadas e olorosas, ia rebentar em frutos opimos e sumarentos.
Dá‑se, então, um desvio na sua marcha harmoniosa pelos campos da Poesia e êle enveréda, resolutamente, pelas ínvias e perigosas estradas do partidarismo provinciano, pondo o seu exuberante e cálido talento a serviço da enganosa e pérfida sereia …
Cartas politicas, artigos de imprensa, polêmicas, manifestos, sátiras, eis aí os principais frutos da sua seara intelectual depois dos trinta anos, quando, deposta a Lira nos ramos de um salgueiro maldito, quasi esqueceu de todo a divindade ideal que o fazia ir “sempre em busca do céu”, como todos os poetas, eternos namorados das estrêIas.
E assim, entre creaturas nem sempre dotadas do necessário senso crítico para compreender‑lhes e avaliar‑lhes a importancia e o brilho, esbanjou, com uma prodigalidade de mandarim do pensamento, as gemas mais raras e caras da sua capacidade creadora.
Foi uma fase brilhante, essa, não ha negar, mas daquele brilho efêmero, meteórico, que deslumbra, ofusca e passa.
Quem quer que examine e admire o esplendor da forma, a veemência e a orginalidade de suas produções intelectuais desse tempo, todas elas, dolorosamente, sacrificadas ao Moloch insaciavel do periodismo político, verá que, se tivesse permanecido fechado na sua torre ebúrnea, Soares Bulcão, com os admiraveis dons de espírito com que o fadou a Providencia, teria realizado, por certo, uma obra literaria capaz de sagrá‑lo, não só entre os maiores nomes das lêtras cearenses, mas, talvez, entre as figuras mais representativas da literatura nacional.
Pelo que nos deixou, em prosa e em verso, bem podemos avaliar a grandeza do artista que se deu em holocausto à política, essa mesma política que, aos reflexos da sua alma onicolor de poeta, adquiriu, por vezes, todas as cores iluminadas do arcoiris. . .
Ha, no entanto, um gênero poético em que poucos, no Brasil, o excederam: a poesia da intimidade, a dificílima poesia doméstica. Só os verdadeiros conhecedores do sagrado ofício sabem que de escolhos apresenta. As palavras precisam casar‑se à ideia sem esforço, mas tambem sem vulgaridade; qualquer descuido, por mínimo que seja, conduz ao trivial, quando não leva, o que é pior, ao ridículo.
Grandes poetas têm fugido de explorar este gênero, por lhe temerem as dificuldades e traições. Soares Bulcão enfrentou‑as a todas, com aquela mesma coragem galharda com que entestava, no campo da política, os mais solertes e temíveis adversarios…
Delicadeza emotiva, maleabilidade sintática, doçura vocabular, riqueza de imaginação ‑ eis as qualidades que o fizeram brilhar em tão sinuoso e acidentado gênero literario.
Algumas das suas poesias domésticas reclamam a perpetuidade das antologias; muitas das suas quadras dedicadas à esposa morta podem figurar, com orgulho, ao lado das melhores redondilhas de Correia de Oliveira e Augusto Gil.
Se estais a supor que exagéro, à força do muito aféto que lhe dedicava, escutai as musicalíssimas estrofes do seu grande poema: “Aleluia”. Luiz Guimarães, Afonso Celso e Eugênio de Castro, que são donos de lindos sonetos sobre o mesmo tema, não cantariam mais inspiradamente o enlevo, a graça, o misterio e o encanto de uma filha pequenina:
ALELUIA
Gloria a Deus nas altura, e paz na
terra aos homens de boa vontade.
São Lucas, II-14
Quando Lygia nasceu um doce afeto,
Estranho e novo, em mim tambem nasceu,
Até então meu ser era incompleto,
E nela existe um ser igual ao meu.
Depois de Lygia um raio de esperança,
Entrou‑me n’alma como o sol nas ruinas,
Fez‑me voltar aos tempos de creança,
E ver com amor as cousas pequeninas.
Lygia tem sido o meu poema santo,
O meu sonho doirado e o meu carinho,
Por isso agora compreendo o encanto,
Que prende as aves ao frouxel do ninho.
Junto ao seu berço que feliz me sinto!
E como o tempo e as horas passam breve!
Esta harmonia entre a razão e o instinto
Só compreende quem já filhos teve.
Horas e horas, passo a sós, a olha‑Ia,
Ela falando e eu como a entendê‑la,
Interpretando a sua estranha fala,
Que somente eu entendo ‑ a lingua dela.
Tudo ela diz nessa linguagem rica
De estranho idioma que jamais se aprende;
O que não diz a boca o olhar explica,
O que a razão recusa o amor entende.
E fico preso, todo tempo, a ouvi‑Ia,
Atento, interpretando o que ela diz,
E quando falo, escuta‑me tranquila,
Como sentindo que me faz feliz…
E balbucia, e ri‑se e me aconselha
A ver da vida o lado mais risonho,
E quando dorme, esta alma se ajoelha,
Embevecida, a adivinhar‑lhe o sonho.
Si deixo‑a, mesmo ao longe a voz lhe ouço,
A repetir‑me tudo o que me disse:
Garantias de gloria enquanto moço,
Promessas de ventura na velhice.
E volto e encontro‑a inda dormindo, e vejo
Toda efusão de amor que em mim transborda!
Muito de leve lhe deponho um beijo,
Falo‑lhe rindo e ela sorrindo acorda.
E olha‑me e fica inquieta procurando
Alguem que nas caricias me acompanhe,
Mas salta de repente adivinhando
Por traz de mim o olhar de sua mãe.
Logo a alegria nos seus olhos brilha,
E fica como um passarinho, inquiéta,
Entre as vozes dos pais, chamando‑a filha,
Distingue a voz da avó, chamando‑a neta.
…………………………… ……………….. .
Assim, somos felizes, porque Lygia
A casa traz em festa e borborinho;
Porém, si acaso, alguma cousa aflige‑a,
Meu Deus … como entristece o nosso ninho!
…………………………………………………. .. .
Grato te sou, meu Deus, porque me deste,
Em Lygia maior lei que as do Sinai;
Revelaste‑me o céu na vida agreste,
Dando‑me a glória excelsa de ser pai.
Temperamento arrojado e impetuoso, de uma varonilidade a toda prova, Soares Bulcão deveria, logicamente, ter explorado o gênero que melhor condizia com a sua natureza moral: o épico. Mas em literatura, como em tudo mais, os contrastes e antinomias é que contam. A não ser as enérgicas e inspiradas quintilhas do seu “Hino Arraialense”, não lhe conheço outra poesia a que se possa, acertadamente, chamar de heroica.
Foi, ao contrario, um lírico da intimidade familiar, que confundia os anseios de uma noiva casta com a pureza luminosa dos luares opalinos… Para medir‑lhe a fluidez do verso e a maleabilidade rítmica naqueles maravilhosos tercetos do seu poema “Enxoval”, que toda gente conhece e admira, seria preciso que houvesse um dutilímetro para os vocábulos, assim como ha para os metais. Ha neles palavras que parecem ter asas e expressões tão leves e puras como um ósculo infantil:
Faze‑o de modo tal que o nosso filho,
Mesmo vestido se pareça apenas
Velado à luz de lúcido polvilho;
De peças impalpaveis e pequenas,
Do cristalino astral de linfas claras,
Da lactescência ideal das niveas penas;
Com o ondular sutil das fulvas seáras,
O polen de oiro que do sol promana,
E o sonho branco e virginal das aras;
Com a áurea trama irial de filigrana,
O sedoso aromal de teu cabelo,
E os tons violáceos dos pendões de cana;
Em miniatura, diáfano e singelo,
Has de fazê‑lo, com tal mimo e graça,
Que se ha de encher de inveja o sete‑estrelo;
Será de tudo o que flutua e esvoaça,
De imponderavel tule e gazes finas,
Com transparências límpidas de taça;
E tal como a peneira das neblinas,
Será da amena e matinal frescura
Da névoa alvinitente das colinas;
Peça por peça, cada qual mais pura,
De caprichosos crivos delicados,
De tenuíssima e leve contextura;
…………………….. …………………….. .
Todas, enfim, tão leves como plumas,
De tecidos e cores diferentes,
Com flocaduras límpidas de espumas;
…………………………………………………….. . .
E só nós saberemos entendê‑los,
Esses pequenos mimos, onde, em tudo,
Ande tua alma em maternais desvelos…
Em que peze ao seu próprio juizo, de todos nós conhecido, “Enxoval” não é a sua maior produção poética, mas, a meu vêr, “Amor” – aqueles três sonetos sobre o tema imortal. Á grandeza da idéia aí se juntam a pureza da linguagem e o calor do sentimento. Bilac não descreveria com maior emoção o
Amor que despedaça e que devora,
Que as próprias carnes, rindo, dilacera,
Amor que tem os ímpetos de fera
E a covardia que se humilha e chora;
Amor que aceita o vil desprêzo e, embora
desprezado, jamais se desespera,
Que vive só dessa fatal quimera
E na própria desgraça se avigora;
Amor que sofre o escárneo perdoando,
Orgulhoso de todas as misérias,
De todas as vergonhas triunfando;
Amor, enfim, que só de amar se ufana,
Veneno n’alma, incêndio nas artérias,
É a excelsa glória da fraqueza humana!
Tratando de Soares Bulcão como poeta, vem aqui a propósito uma referencia ao canoro trovador de quem todos nós sabemos uma porção de quadras admiraveis, inspiradas pelo prematuro desaparecimento da mulher eleita, cujo epitafio ele insculpiu nestes decassilabos maravilhosos, como se o fizesse sobre um alvo bloco de mármore da Grécia:
No coração
Eterna guardarei, entre dobres de sino,
De teu corpo, que foi o meu culto pagão,
A tua alma que é hoje o meu culto divino.
Recordemos, pois, algumas das suas mais encantadoras redondilhas. Que elas, as suas lindas trovas, hoje aqui, nesta noite de saudade e afeto que lhe dedicamos, esplendam e brilhem como um punhado de estrêIas que êle nos atirasse das célicas alturas onde ora revôa a sua alma luminosa de poeta…
Ei‑las:
A chave de fita escura
Com que fechei teu caixão,
É a mesma da fechadura
Que trancou meu coração.
Pediste a Deus que nos désse
A morte no mesmo dia,
Foi ouvida a tua prece;
– Nem pior morte haveria!…
Quando vi que a tua língua
Já não dizia o meu nome
Minha alma chorou à míngua
Como um mendigo, de fome.
Quando as pálpebras cerraram
Teus olhos cheios de amor,
Tuas pupilas guardaram
Retratos da minha dor.
Ai! aquele último abraço
Que me deste à despedida,
Foi, entre nós, como um laço
A morte prendendo à vida.
Quando eu apertei na minha
A tua gelada mão,
Toda a algidez que ela tinha
Passou ao meu coração.
Quando chega a noite escura
Vou para o leito esperar‑te,
Minha alma vive à procura
Da tua por toda a parte.
Quando estou só no meu leito
Maldizendo a solidão,
Sinto que estás no meu peito
Me escutando o coração.
O vento passa veloz,
Perturbando a noite calma,
Mas eu ouço a tua voz
Quando estou só com minha alma.
MIRANDINHA
O nome de que era se estima
Sempre nos sai em poesia,
No verso formando rima,
A prosa dando harmonia.
Mirandinha, Mirandinha,
Que lindo nome era o teu!
Faz parte da ladainha
Que eu rezo junto com o meu.
Foi no teu nome, a cantar
Pelas horas de sol‑pôr
Que eu aprendi a rezar
O padre‑nosso do amor.
Quatro sílabas eu digo,
Quando chamo Mirandinha,
Mas meu coração consigo
Só duas repete: – Minha,
Com dez estrelas se escreve
Teu nome: – trago‑o de cór –
Querendo fazê‑lo breve
Tirei cinco: ei‑lo maior.
Gravei teu nome na areia
Para matar a saudade
Mas, à noite, a maré cheia
Passou levando a metade,
Quando o sol vinha nascendo,
Fui ver o que estava lá,
Vi cinco letras dizendo:
M.I.N.H.A.
E que diríamos de “Parêmias” este conjunto de máximas populares enfeixadas em trovas de fino sabor? Cada uma delas encerra uma lição de bem viver, uma gota de filosofia, que êle colheu diretamente nos lábios do povo, como uma abelha diligente e honesta suga o mel no corola das flores. Na cartaprefácio desse livro “interessante e fóra do comum”, acentua Afonso Celso que “Parêmias” “indica não só extraordinaria soma de trabalho paciente, para coordenar e metrificar numerosos adágios e ditados, alguns já um tanto olvidados, porem ainda apurado conhecimento da lingua e verdadeiro lavor de poeta, pela graça natural e espontaneidade harmonica dos versos.”
Dessa colmeia sonora, cujos favos estão cheios do mel da sabedoria popular, retiremos, primeiramente, algumas das inspiradas trovas que abrem o livro, dirigidos ao seu filho Hiram Soares, então creança e hoje ilustre oficial do Exército brasileiro, que me deve estar ouvindo agora com o coração, ao mesmo tempo, transbordante de orgulho e de saudade. Note‑se, de passagem, a preocupação constante pelos extremos de seu aféto: a esposa e os filhos. As quadras dizem assim:
É nessa fonte singela
Que está o ingênuo saber,
E eu quero ensinar‑te nela
A bíblia do bem‑viver.
Cada provérbio conciso
Tem um conceito a estudar:
Para entendê‑lo é preciso
ter coração para amar.
Quando chegares à idade
Em que se perde a ilusão,
Procura sempre a verdade
no teu próprio coração”.
Pai amoroso e excelente poeta, não quis falar apenas à razão, mas sobretudo ao sentimento do filho. O conselho contido nessa última quadrinho é bem de um homem de natureza imensamente sensivel que se acostumou a consultar sempre, nas suas horas dificeis, o velho orgão que, segundo Rui Barbosa, “vê ao longe, vê em ausencia, vê no invisivel e até no infinito vê.”
Faz‑nos tambem lembrar o ducíssimo Lamartine para quem o que ha de divino não se escreve: fica no coração.
Mas continuemos a nossa colheita no “Album de Hiram”, que assim se denomina a parte inicial de “Parêmias”. Não é preciso trabalho de escolha, porque todos esse adagios rimados, já pela sua tessitura poética, já pela grandeza dos conceitos que encerram em tão diminuto espaço, lembram translúcidas gotas de orvalho em que se reflete a imensidade do infinito azul…
Desfiemos este rosário de contas… filosóficas:
Para chegar onde queres,
Basta ter perseverança;
Se muita gana tiveres,
Ficarás: – quem corre, cança.
Faze da palavra lei,
Mesmo contra o que te apraz;
Sustenta o dito: – De rei
Palavra não volta atraz.
Tem por certa a recompensa,
Se o que praticas te exalta;
Não te domine a descrença,
Que – Deus tarda, mas não falta.
Muita coisa que vidrilha
Parece ser um tesoiro…
Não te Iludas com o que brilha..
– Nem tudo que luz é oiro.
Nunca o grito vil do insulto
O medo em teu peito acorde;
Falar de mais é de estulto
E – cão que ladra, não morde”.
Agora esta redondilha que parece ditada pela fleugma britânica:
“Vem um desastre, e vêm dois,
E a paciência te cança;
Mas espera: – Vem depois
Da tempestade a bonança”.
E esta que bem poderia ter servido de legenda à gloriosa Pátria do Dante, antes do seu salto histórico no abismo da ignomínia:
Nunca a amizade desleixes,
Por andar a estranhos povos;
Se tens juizo não deixes
Velhos amores por novos”.
E ainda esta outra que não preciso dizer a que nação se ajustaria, ou se ajustará, após a tragédia que o próprio Eurípedes não saberia descrever:
Se queres viver tranquilo,
Entre as intrigas que passam,
Não faças a outro aquilo
Que não queres que te façam.
Na segunda parte de “Parêmias”, intitulada “Tonadilhas”, Soares Bulcão glosa os proverbios populares, não em uma, mas em duas trovas artisticamente lavoradas. Queréis um exemplo? Temo‑lo, aqui, neste minúsculo poema da felicidade conjugal, assunto que, como já vimos, foi o leit‑motiv da sua arte:
“Era‑te um desejo antigo.
Todo o teu supremo ideal,
Uma consorte e um amigo,
Meio termo entre o casal.
Já casaste, e a esposa fiel
Deu‑te um filho: que mais queres?
Nem outro amigo preferes…
Caiu‑te a sopa no mel!
E, por não me alongar demasiadamente, encerro as citações de “Parêmias” com esta flôr que tem o delicado perfume de rosas machucadas:
“Quem ama não se contenta
Com o gozo que o amor lhe dá;
Nas dores que o amor inventa
Tambem delícia achará.
Nada a ventura destroi
Nas almas que o afeto enlaça;
Depressa o desgosto passa. ..
– Pancada de amôr não doi”.
As páginas desse livro “Parêmias” definem, por outro lado, a sua inata compreensão das almas simples e rudes, cujo contacto êle buscava, de quando em quando, como se entendesse que lhe multiplicava as forças morais e intelectuais, assim como ao gigante Anteu aumentava as forças físicas o contacto do terra. Amou, realmente, com um amor generoso e espontâneo, as creaturas de alma desataviada e sã que lá vivem anônimos, nos vales verdes e nos píncaros azues do seu extremecido “Arraial”. E da “terra do amor, fecunda e linda”, como a chamou em verso, se fez pugnacíssimo paladino, qual um novo D. Quixote que, empunhando, de fáto, uma lança de afiada ponta‑a sua pena invicta – atingisse realmente inimigos de carne e ôsso e não apenas monstros fictícios ou trêfegos moinhos de vento …
Só uma modalidade poética se ajustou perfeitamente ao seu temperamento apaixonado e rebelde: a sátira. Não é farta a sua mésse de poesias satíricas, mas algumas que conhecemos dão‑nos a justa medida do quanto poderia ter realizado, se lhe apetecesse, em tais domínios. A verdade, porem, é que as suas melhores e mais contundentes farpas foram vasadas em prosa, naquela prosa “rude e austera”, cheia e nervosa, que tanto lhe admirávamos. As influencias de Rui Barbosa e Eça de Queiroz nela se espelham cristalinamente. A sinfonia verbal e a amplitude fraseológica do niestre incomparável da “Réplica” se funde com a souplesse, a ironia e a lasticidade sintática do exigente e caprichoso artista de “As Cidades e as Serras“. Refletindo essas benéficas influencias, soube, no entanto, conservar em quanto esvreveu o sinete característico da sua original personalidade.
Sem jamais haver frequentado universidades e cursos superiores de lêtras, Soares Bulcão tinha, como que o instinto da beleza literária. Amou a língua portuguesa com afeto filial, estudou‑a no fonte silenciosa e lúcida dos clássicos e, por isso, aprendeu a manejá‑la com perícia e galhardia. Na prosa como no verso, sobretudo nos seus sonetos de feição camoneana, pôs a prova os recursos expressionais que extraiu dos veios inexhauriveis do “fingua dulcíssona e canora, em que mel com aroma se mistura.”
Eis aqui um exemplo, neste belo soneto
DOR SUPREMA
Á minha mãe.
Tento exprimir, ó mãe, debalde tento
Cantar a dôr nas sílabas de um verso,
O amor materno em lágrimas disperso
Pelo intérmino mar do sofrimento; .
Procuro o pranto, o lúgubre lamento,
Tudo o que geme no martírio‑imerso,
E essa agonia eterna do universo,
Não diz o teu sofrer de um só momento.
Sondo da noite os tétricos gemidos,
Ocultos ais dos corações feridos,
A angústia, a pena e o dó que me insinuas…
E esse concerto de ânsias e queixumes,
Capaz de encher milhares de volumes,
Mãe… não vale um lágrima das tuas!
Não foi mero fazedor de frases, um simples virtuose da literatura. No que escreveu ha consistência e elevacão de pensamento; a argamasa flexivel das idéias sustenta as suas vigorosas construcões artísticas. Páginas suas conheço em que se revela um profundo sabedor da psicologia humana e social, já na discrição de cenas e fátos remotos, já na análise de situações e na pintura de quadros e homens da sua época. Sua lente intelectual possuía uma extraordinária penetração.
Conheceis, por certo, aquela página máscula e formosa em que êle evoca o rio da sua cidade natal, o largo e majestoso Mundaú, cujo doce e sonoro remurmurio embalou a sua infância descuidada e feliz. A opulencia da forma, a amplitude do ritmo, a veemência do emoção e a grandeza da idéia, conjugados aí num todo de beleza incomum, justificam o conceito de Antonio Sales, para quem Soares Bulcão era um dos maiores: prosadores do Ceará contemporâneo. Ouçamos alguns dos seus períodos ruibarboseanos:
“Rio de curso livre, cumpriu, nobremente, o seu fadario benéfico, e os mesmos olhos que lhe vêem, na fonte de suas origens, o fio tenue insinuando‑se pelos despenhadeiros, no ápice da serra onde nasceu, podem, tambem, de lá, num esforço de visão percuciente, avistar, na mancha longinqua das praias, o esbranquiçado perfil das dunas que contornam a aldeia que lhe tomou o nome.
Mundaú, meu rio natal, obscuro jordão do meu batismo, em cujos aguas lustrais, – purificadas pelos embates das cachoeiras, – se cristianizou toda a minha raça humilde, foi de ti, da tua soberania sem vassalagem, das origens misteriosas de tua perenidade vencedora, do segredo, das tuas revoltas indomaveis em loucas enxurradas triunfantes, dos abismos insondaveis do teu leito de precipícios, do trágica angústia dos teus desfalecimentos nas estiagens periodicas, do sentido das vozes místicas das tuas litanias evocadoras, da placidez do teu deslisar indolente pelos vales que fertilizas, fecundando a vida imortal, foi de tí, da harmonia universal que se reflete no cristal das tuas aguas, que eu herdei os motivos das inexplicaveís rebeliões do meu espírito, as incoerências incompreendidas do meu temperamento de impulsivo, os contrastes incongruentes da minha índole, altiva sem soberba e submissa sem baixeza, o irrequieto latejar do sangue aventureiro que me corre nas veias, a formacão do meu caráter inamolgavel ás imposições da prepotencia, a tristeza enigmática do meu ser nas horas de dúvida e meditação, as ressonancias recônditas da minha alma de sonhador e poéta, e a generosa fragilidade do meu coração de sentimental impetinente.”
A política, que lhe sugou o melhor da seiva intelectual e moral, serviu talvez para afirmá‑lo, publicamente, como uma das mais fortes personalidades de nosso meio. Desassombrado e leal, nunca torceu caminho ao inimigo. Encarava de face os mais ferrenhos adversários a quem a sua bravura pessoal inspirava respeito e medo, ao mesmo tempo.
Foi, por isso mesmo, um amigo raro. Cultivava os seus afetos com devotado carinho, mais do que carinho, com amor. Punha em suas amizades algo de religião ou de mística; daí aceitar, com alegria e até orgulho, as renuncias e sacrifícios que, porventura, lhe impusessem.
Entre os seus maiores amigos contava‑se Anastacio Alves Braga, o inditoso filho de ltapipoca. Nas páginas do livro que dedicou à sua memória, Soares Bulcão assim justifica, os motivos que o levaram a traçar esta obra que alguem, com justiça, chamou de “poema biográfico”. E escreve: “Quanto ás credenciais – se elas são precisas a quem cumpre o seu dever – direi que, sem laço de parentesco que nos unissem, a êle me prendiam, contudo, liames de uma tradicional amisade de família, de afinidade políticas, hereditárias, que vêm de progenitores, pais e avós contemporâneos, ligados pelo mesmo credo, desde os meiados do século transacto, sentimentos cultivados por nós ambos, através de todas as vicissitudes da vida, até o dia funesto de sua morte.” No fim desse prefácio, datado de 7 de março de 1928, caem‑lhe da pena estes períodos como lágrimas dos olhos:
“E agora, que ele desapareceu de súbito, de morte tão violenta e deshumana, sinto que ao meu lado está vazio o lugar que ele ocupava na terra, e não me conformo com o vácuo que me acompanha.
Si essa afinidade de espírito e sentimentos, essa força misteriosa que une os indivíduos de diversa origem, para os mesmos destinos na vida, não vale mais, talvez, que o próprio vínculo do sangue, – tantas vezes renegado por justos escrupulos de consciencia; – si essas razões, quê: são as minhas, não fossem suficientes e bastantes para o tamanho da minha repulsa contra os seus covardes matadores, ainda, assim bastar‑me‑ia para justificá‑la, o simples cumprimento de um dever cívico, a satisfação íntima que me fica de tê-lo nobremente cumprido, com o dessassombro de atitudes que sempre me hei imposto.”
Em face disso, vemos que Soares Bulcão e Anastacio Braga foram amigos como têm sido raramente creaturas formadas deste mesmo barro frágil e imperfeito.
Embora produzido ao calor de um insopitavel sentimento de revolta e de um ardente anseio de justiça, este livro, consagrado à memoria de seu amigo, assinála e espelha as qualidades mestras do estilo nervoso e enérgico de Soares Bulcão. É, sem dúvida um dos mais preciosos legados do patrimonio intelectual que nos deixou. Antonio Sales, numa frase feliz, chamou essa obra de “camafeu sangrento” em que está gravada a figura de Anastacio Braga – essa individualidade que o cantor imortal de “Minha Terra” comparou a “uma árvore forte e generosa, a abrir sua capa benéfica no deserto moral dos nossos sertões”.
A segunda parte da obra compreende um extenso e valioso estudo do genealogia do saudoso político cearense, o que aumenta de muito a importancia e o valor destas páginas realmente másculas, cheias dessa beleza viril que promana das inteligencias inflexiveis e nobres e dos caractéres indomáveis e retilíneos.
Alem desse, muitos outros trabalhos geneológicos deixou-nos o poeta de “Parêmias”, como incontestavel documento de seus raros dons de investigação, os quais lhe valeram, aliás o ingresso no Instituto do Ceará, no Instituto Genealógico Brasileiro e no Instituto Heráldico‑genealógico de São Paulo.
Honesto, infatigavel, possuido daquela curiosidade historica que era um dos seus traços assinalativos, rebuscou e revolveu arquivos, esquadrinhou alfarrábios, esmerilhou autos e registros civis, desempoeirou batistérios de vetustas igrejas do interior, com a só ambição de descobrir o ponto de partida de um sem número de familias conterrâneas, para, afinal, com mão de mestre, definir‑lhes a origem, a gênese, a linhagem.
Intelectual no verdadeiro sentido da palavra, poeta, prosador, jornalista, genealogista, historiador, Soares Bulcão merece as homenagens que lhe vêm sendo tributadas pelas classes literárias da terra que lhe encheu o berço de claridades e hoje lhe cobre o túmulo de flores.
Falando em nome da Casa Juvenal Galeno, nesta noite evocativa, dedicada à memoria de um dos seus maiores e mais iIustres amigos e colaboradores, quero, ao pêso da emoção que a todos nos envolve neste instante, levantar a mesma indagação dorida que Antero de Quental engastou num dos seus sonetos mais emotivos e profundos:
“Os que amei, onde estão? Idos, dispersos…
E, de alma genuflexa, recito, como em prece, o penúltimo terceto da jóia lírica do torturado e genial artista lusitano
“Mas se para um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto‑os ao meu lado
De novo, esses que amei: vivem comigo”.
Porque, com o pensamento voltado para êle, Soares Bulcão, o grande morto que hoje recebe aqui a homenagem do nosso espírito e do nosso afeto, eu sinto tambem que a sua presença está viva em todos nós, por um milagre da saudade – esta fonte divina de resurreicões!
Conferência pronunciada na “Casa Juvenal Galeno”, por ocasião da solenidade que alí se realizou, em homenagem à memória de Soares Bulcão, a 21 de Novembro de 1942.